(Débora Prado/Agência Patrícia Galvão, 05/08/2016) Em entrevista exclusiva, a diretora do documentário “Quem matou Eloá?”, Lívia Perez, fala sobre o papel da imprensa quando, ao invés de contribuir para o enfrentamento, reforça estereótipos de gênero que estão nas raízes das violências contra as mulheres ou até reforça a violência sofrida ao violar outros direitos.
Eloá Cristina Pimentel tinha 15 anos em 13 de outubro de 2008, quando foi feita refém pelo ex-namorado, Lindemberg Fernandes Alves, juntamente com sua melhor amiga, Nayara Rodrigues da Silva, e dois rapazes, que foram liberados no mesmo dia pelo sequestrador. O cárcere de Eloá e Nayara durou cinco dias e foi amplamente explorado por redes de televisão, que chegaram até a entrevistar o sequestrador ao vivo durante o cativeiro.
Em 17 de outubro, policiais do Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate) invadiram o apartamento e, em meio à troca de tiros, Eloá e Nayara foram atingidas. Eloá foi baleada na virilha e na cabeça e não resistiu ao ferimentos, vindo a falecer no dia seguinte. Nayara recebeu um disparo no rosto, mas sobreviveu. Sem ferimentos, Lindemberg foi detido e posteriormente condenado, conforme informa matéria do Portal Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha.
À época o crime foi tratado pela imprensa como um ‘caso passional’, muitas vezes abordado como uma briga de casal que ainda poderia ter um final feliz. Mas hoje esse crime tem nome: feminicídio. O assassinato de mulheres em contextos discriminatórios, como os decorrente de violência doméstica e familiar, foi tipificado no Brasil em março de 2015 justamente para evitar o que aconteceu no caso de Eloá: para que o feminicídio não seja minimizado no sistema de Justiça e na imprensa por meio de classificações como ‘crime passional’ ou ‘homicídio privilegiado’ – quando o autor age sob violenta emoção, teoricamente motivada por uma ação da vítima, conforme aponta o Dossiê Violência contra as Mulheres.
O documentário “Quem matou Eloá?” (confira o trailer no final da entrevista) traz uma análise crítica sobre a espetacularização da violência e a abordagem da mídia televisiva nos casos de violência contra a mulher, revelando um dos motivos pelo qual o Brasil é o quinto no ranking de países que mais matam mulheres.
Para a diretora Lívia Perez, o caso é emblemático pela quantidade de violações aos direitos das mulheres: “além de não reconhecer o crime como um caso de violência contra a mulher e não aproveitar a oportunidade para debater o tema com a sociedade brasileira, a imprensa interferiu no crime, entrevistando o sequestrador ao vivo e tentando negociar com ele, e ainda exaltou a personalidade do criminoso com expressões do tipo ‘bom rapaz’, ‘trabalhador’, ‘joga bem futebol’ e torcendo para que o caso acabasse em um ‘casamento futuro’ entre o rapaz e a ‘amada, apaixonada’ dele”, enumera em entrevista à Agência Patrícia Galvão.
Confira a entrevista:
O que mais a impressionou no caso de Eloá que a motivou a fazer um documentário?
Lívia Perez – No caso do sequestro e do assassinato da menina Eloá, de 15 anos, o que mais me impressionou foi a abordagem do fato pela imprensa em geral. Primeiro porque os casos de sequestro geralmente são mantidos em sigilo até o desfecho, já que a divulgação pode prejudicar as negociações. Depois porque, mesmo se tratando de um caso clássico de violência contra a mulher, a imprensa não reconheceu esta característica do crime e, pior, difundiu-o como um ‘caso passional e de ciúmes’.
Como você avalia o papel da imprensa durante o sequestro?
A imprensa começou seu erro ao transmitir o crime enquanto ele acontecia, fazendo uma ampla divulgação, chegando a ocupar horas da programação de vários canais que transmitiam ao vivo imagens do prédio que servia de cativeiro. E a situação piorou ainda mais quando os veículos começaram a exaltar a personalidade do criminoso e chegaram até mesmo a entrevistá-lo ao vivo por telefone. Praticamente todas as TVs fizeram isso e muitos jornais também. Ou seja, além de não reconhecer o crime como um caso de violência contra as mulheres, não aproveitando a oportunidade para debater o tema com a sociedade brasileira, a imprensa interferiu no crime, entrevistando o sequestrador ao vivo e tentando negociar com ele, e ainda exaltou a personalidade do criminoso com expressões do tipo “bom rapaz”, “trabalhador”, “joga bem futebol”, torcendo para que o caso acabasse em um “casamento futuro” entre o rapaz e a “amada, apaixonada” dele.
Você avalia que o feminicídio de Eloá fez a imprensa refletir sobre seu papel no desfecho fatal? Notou alguma mudança na cobertura desde então?
Por um lado houve uma mudança e os próprios profissionais do meio refletiram sobre o papel da imprensa, ainda mais porque uma das emissoras de TV foi condenada por meio de uma ação civil pública pela exposição da imagem e do sofrimento de duas menores de idade, Eloá e sua amiga Nayara, que ficaram cinco dias sob tortura e ameaça de Lindemberg. Por outro lado, penso que ainda há muita exploração de crimes, dependendo da classe social e da etnia das vítimas.
A partir deste caso, que cuidados você recomendaria a profissionais da imprensa que cobrem violência contra as mulheres?
Acima de tudo, reconhecer os casos em que há violência contra a mulher, reconhecer que este é um problema grave no Brasil, que é o quinto país que mais mata mulheres e evitar romantizar este tipo de crime. O ideal seria reconhecer os agentes ativos dos crimes até mesmo no momento de elaborar títulos e chamadas e tentar abordar o tema de forma a conscientizar a população sobre o tema da violência contra as mulheres.