(O Estado de S. Paulo, 13/08/2016) Conectadas pelas redes sociais, negras brasileiras compartilham seu ativismo, organizando eventos e debates que reúnem multidões
Não foi só o reconhecimento de anos de esforço de uma atleta cheia de talento e sem recursos. Foi também mais um basta. A judoca Rafaela Silva conquistou na segunda a primeira medalha de ouro do Brasil na Olimpíada do Rio. Mulher negra de 24 anos, imediatamente tratou de lembrar às câmeras que a vitória foi uma resposta aos ataques racistas que recebeu após ser desclassificada na Olimpíada de Londres, quatro anos atrás. A atleta aproveitou os olhares do mundo para repudiar o racismo sem amenizar as palavras. Disse que “o macaco que tinha que estar na jaula hoje é campeão”.
A agora campeã olímpica quase desistiu do esporte como consequência de ofensas racistas. Hoje, engrossa o coro de uma geração de mulheres negras que cansou de relevar não só o racismo, mas também os menores salários, os trabalhos mais precários, a cidadania negada, a existência invisível. Organizadas principalmente por meio das redes sociais, as negras brasileiras começam a escolher seus expoentes, a dar-lhes suporte, a ocupar os cercadinhos vip e a pautar o debate.
“Estamos disputando o espaço das narrativas hegemônicas, que nos excluem” diz a estudante de arquitetura e ativista Stephanie Ribeiro, de 23 anos. Com mais de 30 mil seguidores no Facebook e textos publicados em dezenas de sites, Stephanie é conhecida por seus posts contundentes. Em maio de 2015, foi uma das articuladoras de um grupo de ativistas que protestou contra a realização de um espetáculo teatral que usava o recurso da blackface, quando atores brancos se pintam de negros. Os protestos viraram um debate organizado no mesmo espaço cultural paulistano onde seria realizada a peça, A Mulher do Trem – que, por sua vez, abandonou a blackface. “Um ano depois fui convidada para conhecer o projeto ‘Diálogos Ausentes’, que nasceu fruto desse descontentamento que começou com um post de Facebook”, conta.
Enquanto Rafaela Silva estava nos finalmentes do seu treinamento vitorioso, três semanas atrás, no fim de julho, mais de 400 pessoas assistiam em São Paulo à série de palestras de um TEDx cujo tema era “Mulheres que Inspiram”. O TED é um formato de conferência criado na década de 1980 na Califórnia que convida pessoas a darem “a melhor palestra de suas vidas” em até 18 minutos. O formato ficou popular nos últimos anos graças aos vídeos publicados na internet. A letra X adicionada ao nome sinaliza que o evento é organizado de forma independente.
A edição paulistana ocupou o espaço de convenções do Hotel Unique, ícone de luxo em São Paulo. Das 20 mulheres convidadas a falar, 17 eram negras. Na plateia, pessoas brancas eram minoria, exceção, destacavam-se na paisagem – coisa rara em ambiente luxuoso como aquele.
Foi o primeiro evento desse porte organizado no Brasil para mulheres negras, segundo a organizadora, a jornalista Alexandra Baldeh Loras, consulesa da França no País de outubro de 2012 a até uns dias atrás. Na semana passada, ela e o marido, o agora ex-cônsul da França Damien Loras, anunciaram que darão um tempo na vida diplomática para continuar morando em São Paulo. Nova York seria a próxima parada do casal, mas o ativismo de Alexandra falou mais alto. Principalmente no último ano, a jornalista se tornou referência no assunto por aqui.
Com pai nascido na Gâmbia, Alexandra é a única negra entre os cinco filhos de sua mãe francesa de origem judia, mas conta que foi no Brasil, transitando no meio da elite local, que sentiu o racismo de fato. “Sempre sou a única negra nos lugares que frequento.” Há um ano, ela começou um grupo de “negras empoderadas” no Whatsapp. Convidou mulheres profissionalmente bem sucedidas e reconhecidas. A advogada e empresária Eliane Dias, casada com o rapper Mano Brown e coordenadora do programa SOS Racismo, da Assembleia Legislativa de São Paulo, faz parte do grupo. A juíza federal Mylene Ramos, cujos estudos incluem a diversidade étnico-racial na magistratura, também.
“Estávamos muito separadas, sozinhas”, avalia a ex-consulesa. O grupo logo ganhou uma versão no Facebook, que chegou a 2 mil integrantes, e virou uma série de encontros no casarão da residência consular, no Jardim Europa. “Foi a primeira vez que eu estive assim, entre tantas amigas negras, nos conhecendo e nos fortalecendo”, disse Alexandra.
A geração da judoca Rafaela Silva levou para o evento sua experiência em usar as redes para mobilizar e unir. Em um momento de delicadeza extrema, a cantora Nina Oliveira, de 19 anos, apresentou a canção “Disque Denúncia”, com trechos como “ontem ele me beijou, e me deixou marcas, mas não eram de batom”. Foi ovacionada. A estudante de ciências sociais Nátaly Neri, de 22 anos, que mantém no YouTube o canal “Afros e Afins”, com mais de 100 mil inscritos, falou sobre beleza e racismo a partir de um ponto de vista pessoal: o de ter passado a infância se achando “a criança feia” e esperando pelo momento em que se tornaria a mulata desejada.
Em performance cativante e provocativa, a estudante de bacharelado em Humanidades Monique Evelle, de 21 anos, falou sobre “o mito de ser feliz fazendo o que se gosta”, nome que ela mesma escolheu para sua palestra. “O que se chama hoje de empreendedorismo, nós, mulheres negras da favela, sempre chamamos de sobrevivência.” Monique é curadora do maior site de financiamento coletivo do País. Em comum, todas elas são aquilo o que o marketing classifica hoje como influenciadoras digitais: nos meios de comunicação virtuais, arrastam multidões. Uma olhada nas páginas e canais que elas mantêm mostra que essas multidões são formadas principalmente por mulheres negras de idades variadas.
“Isso é tão importante, é fruto dessa popularização do feminismo que aconteceu muito devido às redes sociais”, avalia Stephanie Ribeiro. Para ela, toda vez que uma menina lê algo em um blog e não aceita a forma como é tratada pelos meninos, vê um vídeo e acha que não precisa alisar o cabelo ou “toda vez que minha mãe, aos 50 anos, fala de feminismo com suas irmãs”, é um sinal de que o feminismo negro ganhou volume e adeptas. “E que estamos expandindo nossas narrativas e espaços.”
Acesse o PDF: As novas vozes do feminismo negro, por Mônica Nobrega (O Estado de S. Paulo, 13/08/2016)