(Nexo, 15/08/2016) Algumas pessoas se recusaram a comemorar medalha de bronze de um ginasta na Olimpíada em razão de um episódio de um ano atrás. Pesquisadoras analisam como situações assim deixaram de ser ignoradas e passaram a ser alvo de forte reação no Brasil
Em uma conquista inédita para a ginástica artística brasileira, Diego Hypólito e Arthur Nory obtiveram as medalhas de prata e bronze, respectivamente, no final do solo masculino no domingo (14).
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A notícia boa, porém, trouxe à tona um caso ocorrido há cerca de um ano, que levou muita gente a não comemorar a presença de dois atletas no pódio.
Arthur Nory tá indo mt bem, é bonitinho, mas não vamos esquecer do seu racismo. #GinasticaArtistica
— Hebert (@heberthss) 6 de agosto de 2016
Em um vídeo publicado em 2015 nas redes sociais, Nory, de 22 anos, e os colegas Fellipe Arakawa e Henrique Flores tentam fazer piadas com o também colega de equipe Ângelo Assumpção, 19 anos.
O trio associa a cor do atleta, que é negro, a coisas ruins. Diz, por exemplo, que o saquinho de supermercado é branco e o saco de lixo é preto. Nas imagens, Assumpção está nitidamente incomodado.
Após o caso, a Confederação Brasileira de Ginástica pediu investigação e suspendeu os ginastas – o que incluiu a suspensão de suas bolsas e outros incentivos financeiros – por 30 dias.
Nory se desculpou junto com os colegas em outro vídeo. “Aqui é uma equipe e está tudo bem. Exageramos e passamos dos limites. Aqui todo mundo gosta de todo mundo. Por favor, não nos entendam mal”, afirmou.
A Justiça Desportiva se disse incapaz de julgar o caso, que acabou arquivado. Na Justiça comum, nada foi feito, pois Assumpção não prestou queixa, algo essencial para que episódios de injúria racial sejam apurados.
Piadas racistas não são novidade entre os brasileiros. Mas a reação forte a elas é. E foi o que aconteceu tanto na época do episódio quanto agora, com a conquista da medalha de bronze por Nory.
O Nexo conversou com as pesquisadoras Marcia Regina de Lima, professora de sociologia da Universidade de São Paulo, Juliana Serzedello Crespim Lopes, professora de história do Instituto Federal de São Paulo, e Suelem Lima, ex-integrante do núcleo de educação étnico-racial da Prefeitura de São Paulo, a respeito do tema, a partir de três pontos centrais.
Por que, esse tipo de piada é inaceitável, mesmo entre amigos
“Era um momento de brincadeira e vocês entenderam errado”, afirmou, na época, o ginasta Felipe Arakawa, em uma das justificativas sobre o episódio envolvendo o colega negro.
Marcia Regina de Lima Silva, professora do departamento de sociologia da Universidade de São Paulo, afirma que não é tão simples assim. Para ela, o argumento da “brincadeira” serve para manifestar o racismo, sem ter que sofrer, pelo menos imediatamente, o custo de ser racista. “É uma brincadeira, mas com marcadores racistas. Quantas brincadeiras com a heterossexualidade ou branquitude você conhece?”, pergunta.
Juliana Serzedello Crespim Lopes, professora de história do Instituto Federal de São Paulo, é da opinião de que uma manifestação racista nunca é uma piada. “Eles disseram que a cor da pele da pessoa é igual a um saco de lixo, ou seja, dentro dela só tem detritos. Isso é agressivo. Quando se parte das características físicas de uma pessoa para diminuir e desqualificá-la, isso deixa de ser uma piada, e a minha liberdade de expressão é limitada quando chega a uma agressão. Eu tenho certeza de que o Ângelo não achou graça.”
Em entrevista após a vitória e o retorno da polêmica sobre o comentário de 2015, o técnico de Nory, Cristiano Albino, afirmou ao “Globo Esporte”, da TV Globo: “Se fosse assim, eu deveria entrar na Justiça porque me chamavam de narigudo na escola”.
Juliana Serzedello aponta a diferença: “Não estou minimizando a agressão de uma piada por causa do tamanho do nariz. Mas uma parcela enorme da humanidade foi escravizada durante séculos por conta de sua característica física de ser negra. E hoje, os dados do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] de moradia, escolaridade, saúde ou renda, mostram a população negra abaixo da média. Lamento, mas não há interdição racial para quem é narigudo”.
“É muito importante enfatizar que o Nory é uma pessoa pública. Ele tem dever de formar opinião de qualidade e não pode mostrar um vídeo diminuindo alguém por sua raça”, afirma Maria Regina de Lima.
Por que muitas pessoas ainda acham esse tipo de piada algo inofensivo
Em uma pesquisa realizada no Brasil em 1988 e citada pela antropóloga Lilia Schwarcz em sua obra “Nem preto, nem branco, muito pelo contrário”, 97% dos entrevistados afirmaram não serem racistas. E 98% deles declararam conhecer alguém racista. Ou seja, a conta não fecha.
A antropóloga e colunista do Nexo é autora de uma frase famosa: “Todo brasileiro se sente como em uma ilha de democracia racial, cercado de racistas por todos os lados”.
Suelem Lima Benício, professora da rede pública e ex-integrante do núcleo de educação étnico-racial da Prefeitura de São Paulo, cita uma frase célebre do sociólogo Florestan Fernandes que, na sua opinião, resume a relação do brasileiro com o problema do racismo. “O brasileiro tem preconceito de ter preconceito”, diz.
Para ela, a identidade nacional é formada ao redor de uma ideia de receptividade e harmonia entre as raças que é extremamente difícil de ser quebrada. “A própria abertura da Olimpíada reforçou a ideia de um país mestiço e harmônico, unido. Mas somos um dos países em que mais se matam negros no mundo”, afirma.
Para Juliana Serzedello, o racismo brasileiro tem como característica o fato de não se manifestar de forma direta. “A perspectiva de humor é uma forma de as pessoas não admitirem racismo. O próprio Nory não deve se achar racista, mas ele acha normal chamar o amigo de saco de lixo. É um paradoxo”, diz.
Suelem Lima afirma que é importante cobrar Nory pelo seu posicionamento, já que ele é uma figura pública. Mas deve-se ter em mente que sua atitude é resultado de um repertório que está presente na sociedade brasileira como um todo. “Deve-se responsabilizá-lo pessoalmente, mas não penalizá-lo, como algo perdido e único na sociedade brasileira”, diz
Ela ressalta que mesmo negros vítimas de racismo têm dificuldade em se contrapor a essa narrativa, e frequentemente aderem ao discurso de que “é só uma piada”.
Após o caso de 2015 e novamente durante a Olimpíada, Ângelo Assumpção minimizou as ofensas em um vídeo em conjunto com os colegas, no qual afirmou: “não tem problema, a gente é amigo”.
Mas foi incisivo em entrevista ao jornal “O Globo”. “Com o Fellipe e Henrique, não fiquei tão magoado. Nos conhecemos há cinco anos e sei que foi um caso isolado. Mas com o Arthur eu sei que não foi bem assim. Ele sempre passou dos limites, me pedia desculpas, mas nunca mostrou uma mudança de atitude. Sempre voltou a fazer as mesmas brincadeiras”.
Após a medalha de Nory na Olimpíada, Assumpção falou em entrevista ao portal UOL da necessidade de o colega “dar exemplo fora do tablado”, mas voltou a ressaltar a amizade.
“Não tenho mágoas, de verdade. Inclusive somos muito próximos. Torci muito por ele. Tenho muito orgulho do Nory. Agora eu espero que ele seja um medalhista também fora do tablado. Admiro muito quem conquista um pódio na Olimpíada, mas gosto mais ainda de quem consegue brilhar também fora das competições. Somos atletas e temos que aproveitar o espaço que temos para dar recados e exemplos”, disse.
Na opinião de Suelem Lima, “as pessoas respondem de forma diferente quando são vítimas de opressão. Há quem bata de frente, pontue o equívoco, a violência, ressalte que alguém mudou de calçada para evitá-lo porque é negro. Mas isso tem um custo emocional e psicológico muito grande. Ser conivente é uma estratégia diferente de se proteger. E no caso das equipes de elite, elas sempre são muito fechadas, muito juntas. Imagina [Ângelo Assumpção] se tornar o cara que ficou apontando o amigo como racista”.
Marcia Regina de Lima ressalta o custo de se contrapor a esse tipo de situação. “Quem sofre racismo tem uma postura marcada por um lugar de subalternidade. Ele é um jovem atleta negro e está construindo uma história. Seria muito difícil para ele ter uma postura mais dura contra a sua rede de relações”, diz.
Quais as condições transformaram esse tipo de piada em algo inaceitável
Em 2014, ao comentar os casos de racismo sofridos pelo goleiro Aranha, do Santos, em partida da Copa do Brasil, Pelé afirmou: “Se eu fosse parar o jogo cada vez que me chamassem de macaco ou crioulo, não tinha jogo”.
Assim como na sociedade em geral, o racismo sempre esteve presente no esporte, mas tem sido visto por mais gente como um problema a ser enfrentado.
Juliana Serzedello acredita que o movimento negro conseguiu ganhar mais visibilidade e adesão no período democrático que se seguiu à Constituição de 1988 – e que ela considera interrompido pelo processo de impeachment em curso. “O Chico Anísio e os Trapalhões botavam para quebrar com as piadas racistas, mas vivíamos em uma ditadura”, afirma.
Um outro elemento determinante para a visibilidade do caso dos ginastas foi a internet. “O poder de alcance e voz de quem não tem acesso às grandes mídias mudou com as redes sociais”, diz Juliana Serzedello.
“Antigamente, havia uma sociabilidade presencial. Hoje as pessoas tornam mais públicas suas ações, seu comportamento e seus pensamentos em um momento em que os negros estão reivindicando seu lugar no Brasil. Mas é importante lembrar que a internet também tem o potencial de mobilizar ideias conservadoras e exercer o racismo de forma anônima”, afirma Marcia Regina de Lima.
Acesse no site de origem: Por que racismo em forma de piada não é só uma brincadeira, por André Cabette Fábio (Nexo, 15/08/2016)