(O Estado de S. Paulo, 16/08/2016) Rafaela Silva, Joanna Maranhão e o esporte como metáfora da vida
O esporte como metáfora da vida. A história de duas mulheres brasileiras na Olimpíada e muito a se pensar. Rafaela Silva e Joanna Maranhão. Rafaela conquistou o ouro no judô. Mais do que isso, conquistou a redenção depois da desclassificação em Londres, punida por conta de uma regra nova que ela conhecia, claro, mas que afetava um dos principais recursos em que Rafaela era especialista. Formada numa escola de judô, o Instituto Reação criado pelo Flávio Canto, outro medalhista olímpico que usava muito bem o jogo de pernas que passou a ser proibido. Na hora da luta decisiva na pressão da Olimpíada, Rafaela, por um segundo, ligou no automático e foi buscar o recurso no qual ela mais confiava. A decepção depois da derrota esportiva foi enorme, mas muito menor do que a agressão sofrida por ela por mensagens preconceituosas e ignorantes.
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Sobretudo ignorantes, tanto a respeito do esporte, quanto sobre humanidade. Quem agrediu Rafaela não sabe nada de esporte, mas sobretudo tem uma grande dificuldade para se colocar no lugar do outro e medir a consequência os seus atos. As marcas desses atos foram carregadas pela Rafaela nesses quatro anos e ela teve a grandeza de transformar a dor em preparação e foco, muito foco. Estampado nos olhos antes e durante cada luta, até a vitória, o choro e o alívio. Alívio por exorcizar uma marca que ninguém deveria ter que carregar.
Com a vitória, as celebrações para a volta por cima e saudações ao esporte que pode salvar uma menina pobre e dar uma oportunidade para vencer. Há erros e acertos nessas afirmações. Primeiro, não há esporte para pobre e esporte para rico. O esporte e as demandas das pessoas são as mesmas, o que muda é que, quanto maior a renda, maior a possibilidade de se ter acesso ao esporte desde cedo e, assim, dar vazão ao desenvolvimento dos talentos. Quanto menor a renda, menor o porcentual de crianças e jovens que têm a chance de aprender as habilidades e desenvolver as capacidades motoras, cognitivas e emocionais para alcançar o máximo do potencial. E, em segundo lugar, o esporte não é por si só salvação para meninas da Cidade de Deus, como a Rafaela. São oportunidades, de uma maneira geral, que essas meninas precisam. Oportunidades para descobrirem seus potenciais e habilidades, de serem respeitadas na convivência com os diferentes, de serem valorizadas pela trajetória e não por rótulos, seja no esporte ou em qualquer outra área.
A segunda mulher que precisa ser mencionada é a Joanna Maranhão da natação. Por motivos e tempos diferentes, mas por meio das mesmas formas e com a mesma covardia. Joanna fala o que pensa, assumiu a missão de lidar abertamente com questões para lá de cabeludas, como crime sexual, pedofilia e posicionamento político. Especialmente isto, por ela se posicionar e declarar seu apoio ao governo de esquerda, entrou no Fla-Flu violento que ocupa massivamente as redes sociais. Usaram e abusaram da facilidade com que se xinga mulher hoje na internet. Com a Joanna isso não é de hoje, porém, como ela mesma disse, ultrapassou qualquer limite durante a Olimpíada, após as provas em que ela correu, mas não se classificou para as finais.
Mas é claro que esse povo que ofendeu e ameaçou Joanna também não sabe nada de esporte e também nada mesmo de humanidade. Joanna é atleta e estava disputando a Olimpíada do Rio, mas o assunto aqui é outro. Mesmo assim, que tal aproveitar este momento em que está todo mundo prestando a atenção e tirar alguma lição, falar como nos sentimos frente a isso, sem fazer de conta que nada está acontecendo.
Acesse o PDF: Duas mulheres, por Ana Moser (O Estado de S. Paulo, 16/08/2016)