(O Estado de S. Paulo, 16/08/2016) Fotos minhas oferecendo hambúrguer no jantar em vez de brócolis rodariam o mundo
Essa foto foi compartilhada no Snapchat, rede social de mensagens instantâneas, e mostra um bebê pequeninho deitado sobre uma fraldinha de pano no chão de um aeroporto americano, enquanto a mãe olha a tela de um celular. A pessoa que postou a imagem, pergunta: “Quem deixa um bebê assim no chão?” Os comentários não tardaram: “Você não coloca um bebê no chão sujo, com cobertor por baixo ou não”, disse um. “Eu teria falado com ela”, declarou outra pessoa.
Eu também teria falado com ela, mas para perguntar se precisava de ajuda. Quem estava por perto e realmente poderia fazer algo decidiu, em vez disso, fotografar a cena e divulgar nas redes sociais. Um usuário do Twitter capturou a imagem e ajudou a viralizá-la no microblog. Pronto: o Tribunal da Inquisição estava montado e essa mãe, claro, era culpada, ‘joga pedra na Geni’. Depois de massacrada por dias (inclusive na minha timeline por mães amigas!), um jornal apurou a história e a verdade veio à tona: uma série de atrasos e cancelamentos de voos da Delta Airlines fez com que a norte-americana Molly Lensing e sua bebê perdessem a conexão que as levaria para casa. Como a companhia aérea americana não prestou nenhuma assistência à família, a mãe e o bebê passaram dias no Aeroporto de Atlanta, chegando até a dormir no chão do terminal de passageiros. No momento em que foi “flagrada” tinha acabado de acordar, inclusive, e estava pedindo ajuda aos pais depois de dias sem solução para seu caso. “Deixa o filho no chão enquanto fica no Facebook”, vaticinaram os comentaristas odiosos, cheios de razão e, claro, longe anos-luz da realidade.
Depois desse massacre virtual, a reflexão: quantas de nós já não fomos julgadas por pessoas que nos viram por apenas alguns instantes, mas sentiram-se confortáveis para apontar o dedo e dizer que tipo de mãe e mulher somos? Todas, tenho certeza.
Uma vez no hospital uma médica do pronto-socorro me olhou com a pior cara do mundo depois que eu não soube responder quanto meu filho havia bebido de remédio – o moleque escalou o guarda-roupa, abriu a caixinha de medicamentos, pegou o vidrinho de Berotec, usado para inalação, e bebeu. “Foram 10 ml? 20 ml? Quanto de remédio havia no vidro, mãe?” E eu, trémula por tudo o que estava enfrentando, falava, incrédula, “não sei, não sei”. “COMO NÃO SABE?”, perguntava com um tom de quem, na verdade, queria dizer ‘que grande merda de mãe que você é, hein?’. Eu estava péssima e não tive forças para convidá-la para uma conversa depois que os filhos dela nascessem, porque ela, obviamente, ainda não sabia do que uma criança é capaz, mesmo cercada de todos os cuidados.
Outra vez meu filho fez um daqueles escândalos que a gente acha que só os filhos dos outros, aqueles mal-educados, são capazes de fazer. Estávamos em uma loja e ele cismou que queria um vídeo-game, e tinha que ser naquela hora. Enquanto eu explicava calmamente ao chorão que presentes caros assim a gente tinha que se planejar para comprar, ouvi a vendedora dizer, para quem quisesse ouvir, apontando o dedo para nós: “Esses pais de hoje dão tudo para os filhos e depois eles agem assim, ó”. Meu Deus, ela nem me conhecia, nunca tinha me visto na vida, de onde tirou que eu dava tudo para meu filho? Minha irmã estava comigo e ainda tentou contemporizar explicando que não, eu era‘super boa mãe, controlada na hora de dar presentes e blá blá blá’. Eu peguei calmamente meu filho no colo e saí da loja, confiante que aquela vendedora ainda iria enfrentar o primeiro mandamento da lei da maternidade, “cuspirás para cima e cairás em sua testa”. Se caiu na minha testa, cairás na sua também, queridinha, praguejei, em voz baixa.
Nenhuma de nós sobreviveria a um Big Brother materno. Fotos minhas oferecendo hambúrguer no jantar em vez de brócolis teriam rodado o mundo. Eu poderia ter sido flagrada limpando chupeta que caiu no chão na roupa, em vez de lavar. Ou escondida no banheiro para comer chocolate sem ter que dividir com ninguém. Já os registros das noites em claro velando o sono do meu filho, com febre, ou os dias que passei chorando no primeiro mês dele na escola nunca seriam divulgados. Assim como Molly sou uma ótima ou uma péssima mãe, dependendo do dia e do ângulo em que for fotografada.
Acesse o PDF: Nenhuma de nós sobreviveria a um Big Brother materno, por Rita Lisauskas (O Estado de S. Paulo, 16/08/2016)