(O Globo, 19/08/2016) Muçulmanas que usam o hijab se sentem valorizadas, o oposto do que os autodenominados ‘libertadores’ pensam
A recente decisão do prefeito de Nice, na França, de banir das suas praias o burquíni (um maiô que cobre por inteiro o corpo da mulher) é mais um ato discriminatório contra muçulmanos em nome dos direitos humanos e da liberdade. Já tive uma discussão com uma amiga brasileira sobre isso na internet, li um colunista argumentar contra o hijab, e ontem ouvi dois homens atrás de mim na fila do supermercado discutindo como o mundo tinha que liquidar os muçulmanos extremistas no Oriente Médio e acabar com o hijab das mulheres árabes, que as fazem parecer escravas.
Hijab em árabe quer dizer “cobertura”, e o conceito vem do Alcorão. Nele, Alá pede que mulheres se cubram quando saem de casa para se proteger de olhares alheios. “Ó profeta, dizei a vossas esposas, vossas filhas e às mulheres dos crentes que, quando saírem, que se cubram com suas mantas; isso é mais conveniente, para que se distingam das demais e não sejam molestadas; sabei que Deus é indulgente, misericordiosíssimo.”
É compreensível que pessoas de sociedades muito mais promíscuas, como o Brasil e a França, não entendam o uso do hijab. E que vejam isso como uma restrição à liberdade das mulheres de escolher como se apresentar ao mundo, uma limitação sobre o corpo delas. E, de certo modo, é uma restrição sim. Mas uma restrição que veio do olhar masculino que quer devorar tudo do sexo oposto. Mulheres muçulmanas que usam o hijab se sentem protegidas por ele, e mais valorizadas, ou o exato oposto do que os autodenominados “libertadores” do Ocidente pensam.
“As pessoas muitas vezes desprezam as mulheres muçulmanas como incapazes de ter poder ou identidade simplesmente porque elas usam hijab,” disse a fotógrafa americana Yumna Al-Arashi, de ascendência iemenita, ao “Huffington Post”. “Eu acredito que a emancipação das mulheres não exige a adesão a certa maneira de vestir — se é hijab ou biquínis. Definir emancipação com base na aparência física não está ligado ao sentido mais verdadeiro da palavra. Emancipação das mulheres permite a elas terem direitos iguais em todos os domínios, não importa como se vestem.”
O banimento do burquíni nas praias francesas, no entanto, não permite às muçulmanas que usam o hijab a opção de tomar banho de mar e nadar no Mediterrâneo. Isso para mim é uma violência contra mulheres, tão ruim e errada quanto forçá-las a usar o véu. Toda muçulmana deveria ter o direito de usar ou não o hijab. Essa liberdade é essencial em sociedades livres como a nossa aqui no Brasil, e deveria ser também na França. Ditar o que uma mulher pode ou não vestir na praia me lembra os muttawas, policiais religiosos na Arábia Saudita que vão atrás de mulheres em shoppings para ter certeza que nem um fio de cabelo está exposto.
“Sociedades fortes podem lidar com costumes e vestimentas diferentes. Se uma mulher muçulmana quer ir à praia usando um burquíni, isso não a faz uma ameaça à sociedade ocidental. Os reais inimigos da liberdade não são as portadoras de burquínis, mas os políticos que querem bani-los,” escreveu Juliet Samuel no “Daily Telegraph”.
Aqui no Brasil, não existe restrição oficial alguma ao hijab, mas há muita discriminação contra as mulheres brasileiras que o usam. Muçulmanas têm sido atacadas verbalmente nas ruas, sendo chamadas de terroristas e mulheres-bomba. E houve o caso da estudante de Direito Charlyane Silva de Souza, que foi impedida de fazer a prova da OAB em São Paulo em março de 2015 porque era muçulmana e cobria seus cabelos com um hijab.
Mulheres sauditas, que são obrigadas a usar o hijab no reino, estão ganhando mais espaço na vida pública, especialmente na área de esportes. Nesta Olimpíada do Rio, quatro mulheres sauditas estão competindo, todas cobertas da cabeça aos pés. É claro que isso traz desvantagens para elas por causa do calor e da umidade da cidade. Mas também é um triunfo para as sauditas, que só começaram a participar dos Jogos em 2012 em Londres, depois que o Comitê Internacional Olímpico ameaçou banir a Arábia Saudita e qualquer outro país que não tivesse mulheres competindo. A princesa Reema Bint Bandar Al Saud, que foi nomeada recentemente chefe de esportes para mulheres no reino, esteve no Rio esta semana acompanhando as atletas sauditas. Numa entrevista coletiva, ela prometeu que trabalharia a fim de legalizar academias para mulheres no país, que até hoje operam na semilegalidade, e a desenvolver espaços esportivos para o treinamento de atletas sauditas.
Até os Estados Unidos têm nesta Olimpíada uma atleta muçulmana competindo de hijab, Ibtihaj Muhammad, que ganhou uma medalha de bronze na esgrima. Muito alegre e animada, ela disse numa entrevista à TV que não via o véu como impedimento para praticar esportes. “Muitas pessoas não acreditam que as mulheres muçulmanas tenham voz ou que participem do desporto,” disse ela numa entrevista ao “USA Today”. “E não é só para desafiar equívocos fora da comunidade muçulmana, mas dentro da comunidade muçulmana. Eu quero quebrar as normas culturais.”
Com véu, sem véu; de burquíni ou de biquíni, a mulher muçulmana tem o direito de fazer suas próprias escolhas e de ser respeitada. Pessoas como o prefeito de Nice, que atacam mulheres por usar o véu, estão desrespeitando a inteligência, vontade própria e liberdade dessas mulheres. Forçá-las a não usar o véu não é um avanço social, mas sim uma violência e um desrespeito de enormes proporções.
Rasheed Abou-Alsamh é jornalista
Acesse o PDF: Respeite as mulheres muçulmanas, por Rasheed Abou-Alsamh (O Globo, 19/08/2016)