A psicóloga Letícia Moura explica como acontece o acolhimento, o atendimento e a recuperação das vítimas em Cubatão
(Diário do Litoral, 28/08/2016 – acesse no site de origem)
Com a experiência de lidar com vítimas de violência sexual há 12 anos,a psicóloga Letícia Moura atua no Serviço de Atendimento às Doenças Transmissíveis de Cubatão. Em entrevista ao Diário do Litoral, a especialista explica como acontece o acolhimento das pessoas que sofreram crimes sexuais e contextualiza o termo ‘cultura de estupro’ na sociedade atual.
Diário do Litoral – como ocorre o encaminhamento das vítimas para você?
Letícia – A porta de entrada geralmente são os pronto socorros da cidade. As primeiras 72 horas são fundamentais para a intervenção médica.
Existem fontes de capitação como os Conselhos Tutelares, delegacias e Serviço de Saúde para a Mulher. Os crimes sexuais são os mais sérios porque se baseiam no silêncio da pessoa violentada. Quanto mais tempo uma pessoa demora para procurar atendimento psicológico após a ocorrência, mais agravos ela pode ter resultantes dessa violência futuramente.
DL – Existe um período mínimo no qual a paciente deve ficar em atendimento?
Letícia – Elas ficam por pelo menos seis meses. Esse período de atendimento depende do tempo da pessoa e de como a família dá suporte. Quando eu acompanho uma mulher, por exemplo, e ela é casada ou te um parceiro, o atendimento não é só para ela, mas para os dois. Explicamos que a função do parceiro é fundamental para a mulher se reestruturar, poder dar seguimento a vida cotidiana e afetiva dela.
DL – Qual o procedimento de um atendimento psicológico?
Letícia – Temos algumas etapas. A primeira é a do silenciamento, no qual elas quase não falam e costumam chorar muito. É um momento de catarse, libertação, pois passam a entender que é um espaço protegido. Com o decorrer do tratamento, as pessoas chegam à fase da lamentação, a rememoração do trauma, que é muito doloroso mas necessário. O trabalho do psicólogo é mostrar que existe a possibilidade de seguir com a vida após o evento traumático de violência.
DL – Como você avalia que a paciente está pronta ara receber alta?
Letícia – Essa é uma questão que é avaliada pelo psicólogo e pela própria pessoa que passou pela violência. Existem indicativos que mostram que a paciente já pode dar continuidade na vida dela. Geralmente é uma vontade de se reconectar com a vida social, quando pensam em voltar a estudar, trabalhar e até se relacionar novamente. E eu sempre deixo a porta aberta para que elas retornem.
DL – Existe uma cultura de estupro enraizada na nossa sociedade?
Letícia – Sim, existe uma banalização dessa violência. Não tem como não falarmos de como o machismo contribui para essa cultura. Ele subsidia algumas relações de objetificação da mulher. Uma coisa é
você sair com uma roupa porque ela te faz sentir bem. Outra é um homem pensar que você é objeto dele, com o qual ele pode fazer o que quiser. Essa relação da violência do estupro é baseada no poder. Isso está tão arraigado culturalmente e socialmente, faz parte do consciente coletivo, que nós precisamos quebrar esse movimento com ações que eduquem as pessoas.
DL – Mas como lidar com essa questão?
Letícia – Acredito que deveríamos falar mais sobre a saúde mental do homem. Discutir essas questões da relação de poder. Trabalhar com a figura do homem é importantíssimo para que esse comportamento deixe de ser replicado. São pequenas ações que temos com nossos filhos, maridos e conhecidos que ajudam a espalhar a ideia de que as coisas não devem ser assim. Também é possível fazer um recorte racial sobre essa questão. A escravidão no Brasil trouxe uma herança que perdura até hoje. A mulher
negra, que era considerada um objeto para satisfação do prazer dos senhores de engenho,por exemplo, ainda é alvo de uma erotização violenta. É uma questão de proteger quem esteve sempre em uma posição vulnerável.
DL – Qual a sua opinião sobre a repercussão docaso de estupro coletivo no Rio de Janeiro?
Letícia – Eu acredito que a função da mídia foi fundamental, pois deve ser um ponto de apoio para quem sofre a violência, e não deixou a pauta sair dos holofotes. A questão é que ela
estava desacordada e numa situação de violência, não foram relações consentidas. O que diferencia um estupro de uma relação sexual é o consentimento dos envolvidos.
Quando atendo pacientes com um histórico problemático, é possível ver como é cruel o julgamento alheio sobre a situação de vida delas. Sempre buscam justificativas para aquilo que nunca é justificável. Em alguns casos, a mulher fica tão traumatizada que não denuncia o crime.
DL – como você se prepara para lidar com esses casos?
Letícia – Nós, psicólogos, devemos estar bem para atender bem. É preciso fazer terapia e supervisão técnica, onde você discute os casos e quais são as melhores condutas para cada um. Também não deixo de lado a questão da fé. Embora eu fique compadecida,a paciente não precisa do meu sentimento de pena. Eu procuro mostrar que a pessoa é capaz de sair daquela situação, se reerguer e de seguir seu caminho.