Os pais de Maria Gabriela, de 6 meses, são protagonistas do primeiro processo judicial movido por uma família afetada pela epidemia
(Época, 30/08/2016 – Acesse no site de origem)
Maria Carolina Silva Flor imaginou que a pior notícia da segunda gravidez seria o parto prematuro da caçula, Maria Gabriela, com 28 semanas de gestação. Com dores intensas nas costas, Carolina e o marido, Joselito Alves dos Santos, procuraram atendimento no Hospital Municipal de Esperança, no interior da Paraíba. Eram 15 horas do dia 5 de janeiro de 2016. Já na entrada, Joselito foi impedido de acompanhar a mulher. Levaram Carolina a uma sala pré-parto onde, sozinha, esperou 30 minutos até a enfermeira fazer o exame de toque e confirmar a iminência do parto. “A gravidez tinha corrido bem, sem sustos”, diz Carolina. “Não tinha me preparado para ter um bebê antes do tempo.” Os médicos levaram Carolina, sem acompanhante, ela diz, para a sala de parto. Mal soube do nascimento da filha, num parto normal, Carolina ouviu os médicos cochichar. “Falavam baixo, mas eu estava acordada e escutei tudo”, diz. Naquele momento soube que a filha tinha microcefalia.
Carolina e Gabriela encontraram-se horas depois, na sala de parto, enquanto os médicos perguntavam para Joselito se existiam outros casos de microcefalia na família. “Disseram para não me preocupar, que minha filha melhoraria, como se ela estivesse doente”, diz Carolina. Joselito, destemido, vai além. “Era um assombro. Trataram minha filha como bicho”, afirma. Quando chegaram ao quarto, os médicos avisaram os pais que Gabriela receberia alta no dia seguinte. Às 18 horas do dia 16, Joselito notou a filha incomodada. Chamou as enfermeiras, que não vieram. No corredor, alcançou uma médica. Não fosse a insistência, diz, não descobririam os 39 graus da recém-nascida, depois tratada como uma infecção bacteriana. “A médica disse que o hospital não tinha condições de atender minha filha, que era um caso de alto risco, e nos mandou para Campina Grande”, diz.
Na UTI do Hospital Universitário Alcides Carneiro, em Campina Grande, Joselito e Carolina descobriram o tratamento que parte da sociedade dá aos pais de crianças com alguma deficiência. “De alguns, sentíamos indiferença e repulsa. De outros, pena. Um médico disse ‘que pena ela ter nascido assim’. Não sei o que era pior”, diz Joselito. Em seis dias de internação, nenhum exame comprovou infecção por bactéria. “Até hoje não sei o que minha filha teve”, diz Joselito. No resumo de alta entregue à mãe, são apontados três prováveis diagnósticos: “sepse precoce, leucocefalia – AIE (por Zika Vírus?) ou icterícia tardia”.
Naquela semana, Gabriela entrou para as estatísticas nacionais dos bebês com perímetro cefálico menor de 32 centímetros. Àquela altura, a epidemia de Zika era reconhecida até pela Organização Mundial da Saúde. A conexão entre o zika e a microcefalia tinha fortes evidências, tanto que o governo americano recomendou às gestantes, no mês que Maria Gabriela nasceu, que adiassem viagens a zonas de risco. A Paraíba era o segundo estado brasileiro com mais casos, atrás apenas de Pernambuco. Os bebês com alguma lesão neurológica, uma das características da síndrome congênita do zika, eram 1.581.
A gestação de Maria Gabriela não foi programada. Joselito e Carolina queriam que o filho tivesse uma irmã – sim, o desejo era de ter uma menina –, mas Gabriela apressou o planejamento dos pais. Depois de uma semana com dores que percorriam o corpo todo, febre baixa e uma vermelhidão que durou um dia, Carolina foi à Unidade Básica de Saúde (UBS) Bela Vista Luzia Pereira da Silva, onde fizera o pré-natal do filho mais velho. A enfermeira Ana Paula André da Silva, diz Carolina, diagnosticou virose. “Ela disse para eu não me preocupar e tomar dipirona. Antes de liberar Carolina, a enfermeira pediu que ela fizesse um exame de sangue para gravidez. O teste foi feito em 9 de junho de 2015. Oito dias depois, soube do resultado positivo. “A enfermeira falou que o mal-estar eram sintomas da gravidez.” Com três meses, Carol fez a primeira ultrassonografia, a pedido do obstetra que a acompanhava, Bráulio Fernando Silveira da Silva. Durante o exame, em 17 de agosto do ano passado, o médico anotou que o feto tinha pequena alteração dos ventrículos laterais do polo cefálico e pediu uma ultrassonografia morfológica para investigar. “A enfermeira Ana Paula e o obstetra Bráulio disseram que o SUS não dava”, diz. O casal arrecadou dinheiro com parentes e, com cinco meses de gestação, repetiu o exame na rede particular. O laudo não mostrou nenhuma alteração. Depois, não fizeram outros exames seguindo a orientação dada na UBS. “Se tivessem feitos o ultrassom do último trimestre, saberíamos que se tratava de uma gestação de alto risco e que minha filha tinha microcefalia”, diz Joselito. “A gente poderia ter se preparado.”
Não é exagero de Joselito afirmar que pais de crianças com deficiências precisam se preparar. Para contar a vida real de bebês com a síndrome congênita do zika, Joselito e Carolina criaram o blog Somos Todos Gabriela (somostodosmariagabriela.blogspot.com.br). Lá, contam, por exemplo, a rotina de Carolina e Gabriela em busca dos tratamentos oferecidos na capital, no ambulatório especializado do Hospital Pedro I. Carolina mora num sítio a 4 quilômetros da estrada principal e espera pelo carro da prefeitura. Então, viaja cerca de duas horas de carro até Campina Grande. Lá, Gabriela faz uma sessão de fisioterapia de 40 minutos. Então, Carolina espera pelo carro da prefeitura novamente e segue para casa na segunda viagem de duas horas do dia. Quando não há problema com o transporte da prefeitura de Esperança, Carolina faz o percurso três vezes na semana com Gabriela nos braços e duas bolsas, onde leva comida para ela e para a filha, além de itens de higiene e roupas – Joselito não pode ir junto porque cada família tem direito a um assento no veículo. Desde o nascimento de Gabriela, vivem com o auxílio-benefício, no valor de um salário mínimo, e com a ajuda financeira da família. “Vivo um dilema. Se volto a trabalhar, quem ajudará Carolina com as crianças?”, diz Joselito. “Porque Gabriela chora o tempo todo. E seu eu volto e perco o emprego, quem alimenta meus filhos?”
Como Joselito, Carolina também é filha de agricultores da zona rural de Esperança, no interior da Paraíba. Eles são os únicos que alcançaram a universidade, mas não a água encanada – a prefeitura não instalou caixa-d’água em sua casa, então reservam água em baldes. Carolina é uma das representantes do Sindicato dos Agricultores da região. “Não é porque você mora num sítio, numa cidade pequena, que é desprovido de conhecimento e tem de ser oprimido”, diz Joselito, numa lucidez inspiradora. Antes de Gabriela nascer, informaram-se sobre os direitos de mães e pais na rede pública de saúde. Joselito sabia que a lei permite acompanhamento do pai antes, durante e depois da gestação. “Disseram que não tinha necessidade”, diz, amargurado. Carolina leu a portaria do SUS que indica amamentação no pós-parto imediato. “O choque foi tão grande que nem conseguimos reagir ao que foi imposto”, diz Carolina.
A falta de assistência e a negligência na gestação da caçula, diz Joselito, o levaram ao Ministério Público de Esperança. À promotora Fábia Cristina Dantas, Joselito contou: “Uma enfermeira, que não é habilitada para dar diagnóstico, até medicou minha mulher. Disse que era virose. Carolina não fez os ultrassons que deveria. A portaria do SUS é clara, diz que é uma gravidez de alto risco. E se minha mulher tivesse morrido? E se tivesse acontecido algo com minha filha, uma vez que nasceu num hospital inapto para atendê-la?”. Tempo depois, Joselito recebeu uma notificação sobre o arquivamento do caso, em maio de 2016. Consta no documento que o conhecimento prévio das condições de saúde de Maria Gabriela não interferiu em nada na gravidez de Carolina. Procurado, o MP não respondeu até o fechamento desta edição. A reportagem não conseguiu contatar a prefeitura de Esperança.
A advogada Martha Isis Ribeiro Cabral, que assumiu gratuitamente o caso, pensa diferente. No início de junho, Martha protocolou processo no Fórum de Esperança, em que Joselito e Carolina cobram a responsabilização civil do município de Esperança e a reparação de danos morais, tanto pela negligência médica durante o pré-natal como pela violência obstétrica. “É o primeiro casal que se tem notícia processando o município e pode servir de exemplo para tantas outras famílias que tiveram seus direitos desrespeitados durante a epidemia de zika.”
Com a ação, Carolina e Joselito esperam que o governo dê a Maria Gabriela os mesmos direitos que o irmão teve, uma preocupação que os pais demonstraram desde os primeiros instantes da vida da filha. E é por isso que registraram a caçula com a versão feminina do nome do irmão, João Gabriel, de 2 anos e 3 meses. “Gabriela não é especial. Quero que cresçam sabendo que foram iguais desde o começo”, diz Carolina.