Dana Albalkhi, 27, veste uma jaqueta de couro, brincos dourados de bolinha e jeans quando encontra a reportagem da BBC Brasil. Formada em literatura inglesa, ela dá aulas num colégio particular de São Paulo e quer voltar a estudar. Sozinha no Brasil, onde chegou há três anos, fez vários amigos brasileiros, e sente saudades da família que deixou na Síria. Dana é mulçumana, mas sua religião – e o véu florido que usa sobre a cabeça – não são o que melhor a definem.
(BBC Brasil, 09/09/2016 – acesse no site de origem)
Feminista, a professora diz que, para ela, o hijab é uma forma de liberdade, e não de opressão, como costuma ser encarado. Em agosto, 30 cidades do litoral francês proibiram a utilização do burquíni (traje de banho islâmico,) porque alguns o consideravam uma provocação contra os valores ocidentais. Há duas semanas, a principal instância administrativa francesa, o Conselho de Estado, suspendeu os decretos.
Para Dana, as peças representariam a liberdade de usar o que quiser e viver sua fé. Roupas, diz, não vão impedir que ela seja independente, tenha uma carreira e case por amor.
“As brasileiras chegam para mim e falam: mas você está no Brasil, por que você está colocando o véu? Eu que estou aqui sem família e posso fazer o que quiser. É minha escolha.”
“Se eu não usar o véu, não deixo de ser mulçumana. Deixo, sim, uma parte muito importante da religião.”
Dana explica que o uso do hijab está previsto no Alcorão, livro sagrado do Islamismo, e que serviria para que a mulher “se preocupasse mais com questões intelectuais e espirituais do que corporais”. “Maria (mãe de Jesus), por exemplo, usava”, diz ela.
Por manter sua escolha, a síria já foi chamada de mulher-bomba, ouviu piadas sobre Alá e teve atendimento recusado em uma loja. Também há preconceito no mercado de trabalho.
“Quando faço entrevista, eles escolhem quem não usa véu. Por motivos de segurança, podem me passar por centenas de aparelhos, tudo bem. Qualquer mulher pode, usando um vestido curto, colocar uma bomba na bolsa. Terrorismo não está ligado com vestimenta, mas com uma ideologia doente.”
Abaixo, leia trechos do depoimento de Dana à BBC Brasil:
O véu e a liberdade da mulher
“No Brasil, o conhecimento é quase zero sobre Islamismo e cultura árabe. Não chegam as coisas verdadeiras das nossas práticas e da nossa crença.
Minhas amigas brasileiras fazem perguntas bem simples, mesmo sendo pessoas que já viajaram.
Elas perguntam como faço para namorar, se posso casar com um brasileiro, com um cristão e ligam todas essas coisas ao véu.
Aqui as pessoas parecem não entender isso, mas lá a gente sofre num mundo machista. Para me proteger, o hijab é uma parte importante da minha vida. E, quando a gente sai para o mundo ocidental, também existe machismo.
Então, se a mulher escolheu não mostrar o corpo, é porque não se sente à vontade. Ela se sente em paz assim. Ela é livre, pode ter essa escolha de colocar, e todo mundo tem que respeitar isso. Como todas as mulheres podem andar de biquíni se quiserem, as mulçumanas, se quiserem andar de burquíni, têm direito.
Eu fui à praia e usei um. Olha a pergunta das pessoas: você não pode mostrar o corpo? Poder eu posso, mas não quero. Talvez amanhã eu queira, mas é uma coisa minha.
Aqui no Brasil já tirei o véu, andei sem (ele) por oito meses. Sou livre. Minha família sabe, e acredita nas minhas escolhas.
Sou feminista e fazia parte de um grupo online que reunia feminista árabes (e foi criado na Europa). Lá tem mulçumanas e outras que não são. As não-mulçumanas são contra o véu, acham que é repressão. As mulçumanas, como eu, acham que é uma forma de liberdade.
O hijab funciona para mostrar a modéstia. A mulher, com o hijab, deve se voltar a coisas mais intelectuais e espirituais do que corporais ou materiais. Maria, por exemplo, usava.
O uso do véu está no livro sagrado do Islamismo, o Alcorão. Se eu não usar o véu, não deixo de ser mulçumana, mas deixo uma parte muito importante da religião.
Já o niqab (que deixa só os olhos à mostra) não é da religião. Foi inventado culturalmente pela comunidade para controlar as mulheres. Eles oprimiraram as mulheres e, infelizmente, não pararam os homens.”
Feminismo e religião
“A gente tem que criticar os radicais de cada religião, que têm atos machistas e usam a crença para justificá-los. Mas nunca podemos atacar a religião dos outros.
Temos que definir o feminismo fora dela. A causa mais importante é a mulher. Se o mulçumano fez uma besteira, a gente vai atacar, se o cristão fez uma besteira, a gente vai atacar, e se um ateu fez algo, também vamos fazer um escândalo.
Existem homens que usam a religião islâmica como desculpa para controlar as mulheres. E aí a mulher tem que ser do homem porque ele paga as contas ou deu uma casa para ela morar. Se ele não quer mais aquela mulher, ela sai prejudicada.”
Vida no Brasil e saída da Síria
“As brasileiras chegam para mim e falam: ‘mas você está no Brasil, tira o véu, por que você está colocando?’. Eu digo que estou aqui sem família e posso fazer o que quero. A escolha é minha.
Aqui estou praticando minha religião, mas numa forma adaptável, não como estava seguindo na Síria.
Mudei algumas coisas, como dar a mão para cumprimentar homens, o que na Síria não fazia. Aqui é mais difícil, porque saio sempre para encontrar pessoas novas no trabalho. Não é que estou negligenciando minha crença, mas agora não dá. No futuro, vou querer manter o jeito da Síria.
As mulçumanas colocam limite para os homens estrangeiros, que é como chamamos qualquer homem com quem possamos nos casar. Ou seja, qualquer um que não seja nosso pai, irmão, filho, ou sobrinho.
Estou em uma fase de adaptação para me encaixar no país. Aqui não estou tão perto da comunidade mulçumana, estou próxima só de duas ou três famílias. Minha convivência é com brasileiros.
Mesmo assim, a comunidade fica me mandando libaneses: ah, mas você não vai querer se casar? Por que não?
Eu falo ‘gente, a coisa não é só se casar e ficar em casa, só para alguém arranjar um lugar para eu morar’. É um contrato de vida. Eu tenho que gostar da pessoa.
Casamento agora não é uma prioridade. Quero voltar a estudar. Nessa luta de quatro anos estava super preocupada em viver, comer, trabalhar, e não estava seguindo o que realmente queria, aquilo no qual sou boa.
Fiz faculdade de literatura inglesa em Damasco. Nos meus estudos havia mulheres peladas, lia poemas sobre mulheres, sobre sexo. Então, lá a gente já estava com outra cabeça.
A gente tinha liberdade religiosa, mas não política. E por isso aconteceu a revolução, e eu vou chamar assim porque foi uma revolução. Não foi terrorismo para tomar o país. Infelizmente a mensagem da oposição caiu no meio do caminho. Não tinha força ou unidade para fazer algo.
Resolvi sair do país porque nossa casa foi bombardeada. Nós estávamos dentro. Era uma tarde e tínhamos acabado de almoçar. A gente vivia uma tragédia, mas era um dia normal, como aqui.
Todo mundo que vive na Síria ou nos países que estão sendo bombardeados está com a alma na mão, para se entregar de repente.”
Mãe e avó
“Minha mãe é divorciada. Morei pouco com meu pai, eles se divorciaram quando eu tinha cinco anos.
Se separar foi mais do que difícil para ela. Foi inimaginável. A comunidade a recusou. E ela era inteligente, formada, bonita. Só que lá a mulher só vale quando casa.
A mulher é sempre culpada. Se o homem é bom ou ruim, ela é sempre criticada. Tudo bem, eles se divorciaram, mas ela não tinha que levar esse peso a vida inteira. O divórcio estava no Alcorão, ela não fez nada errado.
Pelo contrário, o Islamismo diz que é preciso cuidar dessas mulheres (divorciadas), porque elas acabaram de sair de um choque. Que é preciso tratá-las com gentileza e amor. Mas infelizmente até as mulçumanas, até eu, não aplicamos nossa religião da maneira mais correta. Se fosse assim, a gente viveria outra realidade.
Minha mãe lutou e sempre disse ‘vocês vão ter que estudar’. Ela dizia ‘nada pode servir mais para vocês do que seu diploma, sua profissão, sua experiência. Nem homem, nem casamento, nada. Seu diploma é sua arma contra tudo’.
Minha avó, a mãe da minha mãe, era muito religiosa. Minha mãe me forçava para ter minha autonomia na vida. E minha vó era sempre aquela voz no fundo dizendo ‘não se esqueça da sua religião’, ‘não se esqueça do Alcorão’.
Cresci com essas duas coisas e tentei equilibrá-las na minha vida.
Minha avó faleceu no mês passado. Ela estava na Síria e sofria de Alzheimer. Mas a mensagem que ela deixou vai ficar comigo a vida inteira. Mesmo com Alzheimer, ela sempre pegava o Alcorão e falava para mim: ‘querida, é isto aqui’.”
Ingrid Fagundez