Assim como o machismo, o racismo é estrutural, sistêmico, hegemônico e privilegia um grupo em detrimento de outro
(CartaCapital, 14/09/2016 – acesse no site de origem)
Escrevo este texto para feministas brancas, mas não o faço por separatismo, mas sim, porque mulheres não brancas não precisam que uma mulher branca fale para elas sobre racismo.
Pelo contrário: o que é necessário, fundamental e urgente é que a gente as escute.
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Toda vez que uma mulher não branca aponta racismo – e com frequência esta mulher não branca é uma mulher negra – seja nas nossas falas e atitudes, ou em um contexto que não percebemos prontamente como racista – a nossa reação imediata precisa ser a reflexão, e não uma defesa impensada.
Ninguém gosta de ser tachada de racista. Assim como ninguém gosta de ser tachado de machista. Tachar alguém de machista ou de racista pode soar agressivo e quiçá totalitário, mas quem precisa lidar com isso não é quem aponta o machismo nem o racismo, e sim quem é apontado como tendo cometido uma ação machista ou racista.
Sei que concordamos que sofrer machismo é pior do que ser tachado de machista, então pergunto: por que achamos tão difícil de entender que o mesmo vale para racismo?
“É mais fácil permanecer no privilégio do que parar para refletir.”
“A gente precisa desenhar para entenderem que não dá para esperar que as pessoas que sofrem racismo sejam elegantes na hora de apontar o racismo? Chega uma hora que a gente não aguenta. São as pessoas brancas que devem repensar suas atitudes para não reproduzir racismo.”
“Minha família é mista, e durante um encontro eu e duas primas decidimos fazer uma foto só das pretas. Uma prima branca reclamou que estava sendo excluída, e rebateu dizendo que ia fazer uma foto ‘só das bonitas’. Eu disse que ela estava sendo racista, e ficou aquele climão. Sei que não era a intenção dela ser racista. Mas ela foi. No entanto foi solicitado que eu tivesse paciência com ela na hora de responder. A minha atitude foi considerada hostil. A dela não.”
Recebi os relatos acima de mulheres negras que participam dos grupos de debate que gerencio (e os deixei anônimos porque os grupos são fechados e as mensagens foram privadas).
Estas breves, porém potentes reflexões condensam uma atitude que nós, feministas brancas, compreendemos profundamente em relação às nossas experiências com machismo.
Nossas demandas são frequentemente lidas como exagero, agressividade, loucura ou “mimimi” por quem não passa pela experiência de opressão de gênero que passamos.
Acontece que não temos experiência com racismo. Acho muito intrigante, portanto, que quando apontam o nosso privilégio, relutemos em ouvir, em assimilar, em refletir, e não hesitemos em pular na nossa própria defesa.
Precisamos ser mais coerentes com nossos ideais, e mais responsáveis no diálogo que travamos com mulheres que têm experiências de opressão que são não apenas diferentes das nossas, mas cometidas por nós.
Assim como esperamos que os homens não se defendam no piloto automático ao apontarmos machismos que eles não entendem como tal, precisamos entender que mulheres negras também esperam que nós não nos defendamos no piloto automático quando elas apontam racismos que nós não entendemos como tal.
Feministas brancas precisam estar dispostas a levar alguns supetões quando o assunto é racismo.
É tentador nos pensarmos como pessoas altamente desconstruídas, mas a impressão que temos de nós mesmas precisa corresponder à realidade das nossas ações – e se apontam alguma opressão que a gente não sofre, refletir antes de se defender não é opcional; é fundamental.
E nem é tão difícil assim: é só lembrar que ser tachada de racista é bem menos dolorido do que sofrer racismo…
Eu (uma pessoa branca) estou aqui escrevendo um texto sobre racismo (algo que quem sofre definitivamente não são as pessoas brancas) muito embora pessoas negras (que sofrem racismo, e de formas bem específicas e agudas) venham nos informando e educando sobre racismo (o nosso ou o do contexto) há anos. E ainda assim continuamos relutando em parar para refletir antes de nos defendermos, continuamos ouvindo umas às outras com mais afinco do que as ouvimos.
Correndo o risco de fazer uma analogia simplista, peço às feministas brancas que se coloquem no lugar de opressoras, quando o assunto é racismo, da mesma forma que esperamos que os homens façam, quando o assunto é gênero. Refletir antes de declarar que algo não é o que quem tem experiência naquilo diz ser é o que esperamos deles. Custa oferecer o mesmo?
Frequentemente escuto de feministas brancas que mulheres negras são agressivas ou debochadas quando em diálogo conosco. Pessoalmente, também não gosto de agressão e deboche, e se evito usar estas duas estratégias nas minhas interações dialógicas, esta é uma escolha minha.
Mas se alguém está sendo agressiva e debochada comigo por causa de um ato racista que eu cometi, bom, cabe a mim ser compreensiva, afinal fui eu que dei o pontapé inicial.
O preconceito estrutural transmitido pelo opressor, ainda que de forma inconsciente, é indubitavelmente mais violento do que qualquer retórica inflamada (que, francamente, creio ser mais adequado chamar de “cansada”) da parte do oprimido.
Pouco importa que a linguagem de quem aponta preconceito seja bem ou mal articulada, didática ou combativa, gentil ou grosseira. Em casos de opressão sistêmica, a forma com que o aviso é dado é menos relevante do que o conteúdo do aviso.
É duro se reconhecer como opressora. Pensamos em nós mesmas como gente bacana, compreensiva, com bom coração. Mas vale lembrar que, assim como machismo, o racismo não é (necessariamente) evidência de mau-caratismo, ou algo que seja feito (sempre) de propósito.
Assim como o machismo, o racismo é estrutural, é sistêmico, é hegemônico, e se perpetua na nossa ignorância em relação a ele. Como pessoas brancas, o racismo nos beneficia.
Acreditar não ser preciso ouvir, relutar em assimilar certas verdades inconvenientes, e fazer estas duas coisas enquanto esperamos ser compreendidas, são evidências do nosso privilégio. Por isso quanto maior o privilégio, maior a necessidade de escutar.
Ironicamente, também parece que quanto maior o privilégio, maior a dificuldade em escutar. (Assinalar isso é diferente de acatar que quem não compartilha de certos privilégios nunca precise escutar.) Mas é preciso entender uma coisa: quem tem experiência em uma opressão sempre deve ter o benefício da fala em se tratando daquela opressão.
Agradeço imensamente às mulheres que, seja por meio de texto, música, imagens ou mesmo interações diretas, colaboram ativamente para a desconstrução de racismos que nós talvez não enxerguemos. Não aceitamos que homens nos expliquem nossa experiência com machismo por sabermos que eles não têm essa experiência.
Não sofremos com a opressão de raça, então precisamos descer do nosso banquinho de privilégios e agir na desconstrução do que, em nós, colabora com ela. E, para isso, precisamos escutar.
Alguns critérios são fundamentais para que o diálogo ocorra de formas mais equânimes, e a relação entre escuta e opressão estrutural é o primeiro deles. Dialogar dá trabalho. Deve ser por isso que as pessoas fogem do diálogo: é mais fácil, e reconfortante, não entrar em conflito e viver com verdades perfeitas.
Mas se todo mundo – em especial quem está em posições de privilégio – entrasse em debate com a mesma disposição para ouvir que tem para falar, garanto que conversar sobre temas espinhosos não seria tão difícil assim.
Problematizamos a problematização da problematização: “ela foi agressiva”, ou “diálogo tem mão dupla”, ou “respeito é para todos”. Mas tudo isso é barulho se o problema continuar onde ele sempre esteve: no apego egóico aos nossos próprios privilégios que nos impede de ver que é a soma da experiência que não temos, com a nossa, o que viabiliza o diálogo. Falar todo mundo quer, mas escutar, nem tanto. E é o mais necessário.
Ouvir dá trabalho. Ter empatia dá trabalho. Compreender uma experiência que não temos dá trabalho. Mudar dá trabalho. Ser justa dá trabalho. O recado da Rihanna serve para além do Drake: todo mundo tem que work work work work work work.
Ouvir, refletir, ter dúvida, mudar de ideia, perceber-se como opressora… Essas coisas dão trabalho, por isso frustram. Mas trabalho e frustração fazem parte da vida. É salutar pôr o ego em xeque, pois isso nos faz amadurecer e compreender o mundo pelo viés da outra.
Certa vez uma repórter perguntou para a feminista estadunidense Gloria Steinem (que é branca) o que ela diria a mulheres não brancas que não se sentem contempladas pelo feminismo, e a ativista famosamente respondeu: “Eu não diria nada. Eu as escutaria”.
Tive a sorte de me deparar com esta entrevista muito cedo no meu ativismo, o que me fez buscar conhecimento produzido por mulheres não brancas. E do espectro que vai de Maya Angelou a Karol Conka, o que aprendi e ainda aprendo de mais útil, ético e justo foi e continua sendo produzido por mulheres negras.
Precisamos reconhecer os benefícios de nossa branquitude bem como saber que leituras sociais de problemas estruturais devem ser feitas apesar da retórica individual de nossas interlocutoras.
Existe uma profusão de material disponível sobre o assunto, inclusive aqui na Carta Capital, mas também em portais como Geledés, Blogueiras Negras e Casa da Mãe Joanna. É altamente recomendável – para não me valer da infame obrigatoriedade – que feministas brancas adquiram conhecimento produzido por mulheres não brancas. E é essencial que as ouçamos, e que reflitamos melhor a respeito do caráter opressor de nossas próprias atitudes.
Deixo vocês com as palavras navalha-na-carne de Audre Lorde, escritora caribenha-estadunidense, feminista lésbica e ativista da luta por direitos civis:
“Como mulheres, alguns de nossos problemas são comuns, outros não. Vocês, brancas, temem que seus filhos ao crescer se juntem ao patriarcado e se voltem contra vocês. Nós, em contrapartida, tememos que tirem nossos filhos de um carro e disparem contra eles à queima-roupa, no meio da rua, enquanto vocês dão as costas para as razões pelas quais eles estão morrendo”.