Na semana passada, veio à tona a conduta desrespeitosa que um promotor do Rio Grande do Sul teve com uma menor de 14 anos estuprada pelo pai. Durante audiência do caso, quando a garota voltou atrás sobre quem a engravidou –ela teve um aborto autorizado pela Justiça–, a reação do homem foi agredi-la com frases como “Tu fez eu e a juíza autorizar um aborto e agora tu te arrependeu assim? Tu pode pra abrir as pernas e dá o rabo pra um cara tu tem maturidade, tu é autossuficiente, e pra assumir uma criança tu não tem?”.
(UOL, 16/09/2016 – acesse no site de origem)
O episódio aconteceu em 2014, mas só foi descoberto quando desembargadores da 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado apreciaram o recurso de defesa do acusado e se depararam com os abusos nos autos. Apesar de chocante, não é um acontecimento isolado quando se trata de processos envolvendo mulheres vítimas de estupro, segundo a pesquisadora Daniella Georges Coulouris, que fez sua tese de doutorado na USP (Universidade de São Paulo) sobre “a desconfiança em relação à palavra da vítima e o sentido da punição em processos judiciais de estupro”.
A seguir, Daniella fala sobre o tema.
Por que, a despeito de todas as discussões em torno da violência contra a mulher, comportamentos como o do promotor ainda acontecem?
O sistema permanece conservador, mesmo que certas falas absurdas e chocantes não apareçam nos autos. O procedimento de investigação da verdade em processos de estupro é o mesmo do século 19. E não por uma espécie de atraso ou reminiscência histórica, mas porque cumpre um papel político. As mulheres são punidas ou recompensadas de acordo com certos critérios de avaliação que determinam qual seria a “conduta apropriada” para elas. São critérios políticos, porque objetivam “mantê-las em seu lugar”, em posições sociais subordinadas.
Você está dizendo, então, que o judiciário é uma instituição conservadora?
Sim, mas não significa que todos os seus membros sejam conservadores. Tanto que o relatório dos desembargadores é exemplar no sentido de enquadrar a conduta da promotoria como criminosa, por infringir não apenas o Estatuto da Criança e Adolescente, como também as convenções internacionais sobre o tema.
As vítimas de estupro tendem a ser mais analisadas do que o próprio suspeito?
Analisei 83 processos judiciais de estupro (53 em minha dissertação de mestrado e 30 na tese de doutorado) e praticamente todas as investigações se deslocam do suspeito e da perícia para a análise do comportamento e histórico da vítima. Essa é a regra. Só não há esse deslocamento quando um bom advogado é contratado para acompanhar as investigações. Ou seja, em processos de estupro, quando a vítima é mulher, ela precisa de um advogado de defesa. Sobretudo se for menor de idade e denunciar alguém da própria família, o que infelizmente é muito comum. Porque a família (ausente ou omissa) pressiona a vítima a retirar a queixa.
Quer dizer que a classe social da vítima também interfere na condução de um caso de estupro?
Sim, e posso citar um exemplo dos casos que analisei. Quando uma mulher foi abordada em seu carro e violentada após um sequestro relâmpago, a polícia investigou a queixa. Ela descreveu o agressor, um tipo diferente de relógio que ele utilizava, uma camiseta específica e um perfume popular. O exame de corpo de delito não verificou nada, mas foi feita uma perícia no automóvel e constataram vestígios significativos para a acusação. Em duas semanas, o agressor foi detido. Foi feita uma busca na casa dele e encontraram a arma do crime [usada para ameaçá-la], a camiseta, o relógio e o perfume. A partir desse momento, outra vítima do mesmo agressor e que descreveu as mesmas características foi chamada para reconhecê-lo. Ela havia dado queixa dois meses antes e nenhuma investigação havia sido realizada. Apenas haviam perguntado a razão que ela tinha para estar caminhando durante a madrugada em um lugar ermo. Qual era a diferença entre as duas situações? A primeira mulher era de classe média alta e um excelente advogado foi contratado para acompanhar a investigação. A segunda era operária e não tinha ninguém em sua defesa.
O próprio interrogatório já é prejudicial para a vítima?
O procedimento de investigação que transforma o interrogatório da vítima na única forma de descobrir a verdade é androcêntrico [privilegia o ponto de vista masculino]. Interrogar a vítima até a exaustão, em vez de buscar formas mais eficientes de investigação policial e pericial, é visto como algo usual e indispensável para evitar a condenação de um homem inocente. O que transparece não é apenas a preocupação legítima de não condenar um inocente, mas o princípio de que é preciso proteger os homens de armadilhas elaboradas por mulheres.
Existem padrões preestabelecidos para uma mulher ser considerada vítima de crime sexual?
É um jogo perverso. Quando a situação não se encaixa no que o senso comum considera estupro, a palavra da vítima costuma ser descaracterizada. É o complexo dilema “será que ela não consentiu mesmo?”. Então, ela é obrigada a relatar todos os detalhes do crime sexual e a responder questões absolutamente desnecessárias. Já se os critérios de avaliação dos indivíduos estão sintonizados para uma possível condenação [as circunstâncias do crime são muito claras], a vítima não passa por um interrogatório muito exaustivo.
O que deve acontecer com o promotor
Segundo Antonio Carlos Cristiano, presidente do 13º Conselho Regional de Prerrogativa da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de São Paulo um procedimento será instaurado e encaminhado para a Corregedoria-Geral do Ministério Público para verificar a atuação do promotor e também para a do Tribunal de Justiça, para analisar a omissão da juíza que presidiu a audiência e que deveria ter chamado a atenção do promotor, pedindo até mesmo uma eventual substituição do profissional e suspendendo a audiência.
Cristiano afirma que o promotor pode perder o cargo e a juíza receber uma advertência.
A Justiça do Rio Grande do Sul desculpou-se com a vítima por meio de uma carta, o que, de acordo com o advogado, é por si só um acontecimento raro. “É que se verificou que a Justiça errou feio. O Ministério Público errou. Com essa carta que a vítima recebeu, ela pode entrar com pedido de indenização contra o Estado do Rio Grande do Sul”, fala o especialista.