A ideia é publicar um livro futuramente. Por enquanto, os relatos estão disponíveis no Facebook.
(Folha de S.Paulo, 21/09/2016 – acesse no site de origem)
Trata-se da página “Eu Empregada Doméstica”, onde são contadas experiências de mulheres que, como se diz, “trabalham em casa de família”.
Transcrevo alguns depoimentos.
“Lembro que fui ao supermercado fazer as compras”, diz D.S.F., “e tinha na lista papel higiênico. O que ela usava estava mais em conta que todos os outros, então acabei comprando o mesmo para o uso no banheiro das empregadas. Quando cheguei, ela viu que eu tinha comprado o papel da mesma marca que o dela. Ela disse que não era para usar o mesmo papel higiênico que o dela para limpar o nosso ‘bicho’ e o nosso ‘rabo’ porque era caro para nós usarmos.”
A atitude dessa dona de casa não poderia ser mais revoltante, claro. Fico pensando se seria apenas avareza; acho que não. O propósito, menos do que economizar a diferença de preço no papel higiênico, parece sobretudo o de humilhar, o de oprimir. Importava, principalmente, suprimir o poder de iniciativa da empregada. Ela “pensou”: pensou que não faria diferença a marca do papel higiênico. Desde quando essa gente pode “pensar”?
Há também a necessidade de marcar a diferença. Quanto mais íntimo o convívio do superior com o subalterno, certamente se torna mais frequente o gesto de mostrar a este “qual o seu lugar”.
As diferenças econômicas e sociais tendem a ocultar-se, ao menos imaginariamente, ao se compartilhar o cotidiano sob o mesmo teto; a televisão, o rádio, a dor de cabeça, a conversa eventual, ameaçam a hierarquia pretendida.
Curioso que, em outros relatos de “Eu Empregada Doméstica”, a diferença (racial, no caso) se torna despercebida em função de grossa insensibilidade.
Eis o que conta L.A., que encontra sua patroa chorando. “Perguntei o porquê, por educação. A resposta foi que ela estava triste pois descobriu que sua filha estava a namorar um ‘mulatinho’ na faculdade de Medicina, e ela não queria netos negros. Ouvi calada pois necessitava trabalhar.”
Aos poucos, o Brasil vai mudando mesmo; as empregadas que participam dessa página não se calam mais. Uma delas reclamou de ter enviado seu depoimento há várias semanas, sem que tenha sido publicado. Resposta dos responsáveis: “Temos mais de 4.000 relatos na fila, estamos publicando por ordem de chegada”.
Há histórias de visível crueldade. “Uma vez trabalhei na casa de uma senhora, nos anos 1990”, conta uma participante, “e lá eu não podia levantar a cabeça e olhar ela nos olhos, eu tinha de ficar de cabeça abaixada”.
“Teve uma vez”, prossegue a doméstica, “que ela achou que o banheiro não estava do jeito dela, a partir desse dia eu tinha que tirar a água toda do vaso com um potinho de manteiga, até que ele ficasse completamente vazio e esfregar com toda minha força. Depois ela vinha e dava descarga, e se ela considerasse que estava mal lavado, eu teria que repetir o processo.”
De minha parte, já ouvi uma dona de casa declarando que chamava de “Maria” qualquer funcionária que contratasse –não queria se dar ao trabalho de lembrar seu nome verdadeiro.
Não vivemos mais a realidade retratada em contos como “Negrinha”, de Monteiro Lobato, ou em “Baú de Ossos”, de Pedro Nava. Ali, já no fim da República Velha, castigos físicos eram aplicados sem remorso na criadagem.
Ainda assim, a herança da escravidão persiste indubitavelmente. Acho apenas que não explica tudo.
Os países desenvolvidos regulamentaram mais o tipo de trabalho assalariado; a escassez de mão de obra e a pressão sindical elevaram os salários, criaram-se muitas facilidades para o cotidiano doméstico. Só que nem sempre foi assim.
Um filme com Julia Roberts, “O Segredo de Mary Reilly”, conta a história de Dr. Jekyll e Mr. Hyde do ponto de vista de uma doméstica. Estamos em fins do século 19: a sua carga de trabalho é massacrante, não há como dormir mais de quatro ou cinco horas por noite.
Não era herança da escravidão: o capitalismo ultraliberal, com larga massa de miseráveis dispostos a tudo para ter um salário, também sempre se encarregou perfeitamente de pôr cada um “no seu devido lugar”. Não faz falta uma Princesa Isabel ou um José do Patrocínio. É o assalariado urbano, não o escravo, quem cuida de ganhar sua própria consciência de classe.