Brasil e Estados Unidos ainda são assombrados pelo fracasso em abolir completamente a escravidão. A violência policial e a política de encarceramento em massa expressam o racismo estrutural e estão na base da desigualdade racial.
(Folha de S.Paulo, 24/09/2016 – acesse no site de origem)
As afirmações são de Angela Davis, 72, ícone da luta pelos direitos civis nos EUA e no mundo, em entrevista à Folha. Após ter enfrentado racismo, ódio, violência e machismo, ela avalia que é preciso entender o contexto maior dos problemas e apontar a conexão entre racismo, capitalismo e patriarcado.
“Não avançaremos em nenhuma de nossas lutas principais se não formos capazes de desafiar e finalmente desmantelar o capitalismo”, diz.
Leia mais: Aos 35 anos, obra de Angela Davis permanece atual e necessária (Folha de S.Paulo, 24/09/2016)
Segundo ela, a cultura do estupro deve ser encarada como fruto da violência institucional. “Violência militar, violência policial, violência prisional incorporam e ajudam a reproduzir o estupro e outras formas individualizadas de violência de gênero.”
Ela defende que o direito ao aborto é “fundamental para o direito das mulheres e para a democracia”. Na sua visão, “o feminismo é uma dimensão indispensável das lutas radicais de hoje”.
Nascida no Alabama (EUA), Angela estudou filosofia na Alemanha, onde foi aluna do marxista Herbert Marcuse. Nos EUA, militou nos Panteras Negras e no Partido Comunista -pelo qual candidatou-se a vice-presidente duas vezes nos anos 1980.
Perseguida e presa em 1970, a campanha por sua libertação teve amplitude mundial. John Lennon e os Rolling Stones fizeram canções em sua homenagem.
Autora de vários livros, Angela está lançando no Brasil, pela Boitempo, “Mulheres, Raça e Classe”, originalmente publicado em 1981. Na entrevista, por e-mail, ela trata da obra, da atuação do movimento “Black Lives Matter” (vidas negras importam) e faz críticas ao processo eleitoral dos EUA. “Nosso objetivo eleitoral mais importante é impedir a eleição de Donald Trump”, afirma.
*
Folha – Em seu livro, a senhora afirma que o racismo é uma construção das classes dominantes para facilitar projetos de exploração. Assim, se pode pensar nele como instrumento para a fragmentação da população em benefício de grandes negócios. Com a crise econômica global, o racismo está expansão? Nos Estados Unidos, o fato de o presidente ser negro mudou algo?
Angela Davis – Ao longo da história do capitalismo, desde a sua era de formação, a do comércio de escravos africanos, até o período atual do capitalismo global, o racismo desempenhou um papel significativo. Mas supor que ele é simplesmente uma criação da classe trabalhadora capitalista é simplificar uma relação que é muito mais complexa. Escrevi “Mulheres, Raça e Classe” durante o período que precedeu a globalização, que levou à rápida desindustrialização da economia dos Estados Unidos, à proliferação de celas e prisões, à privatização da assistência à saúde, ao desmantelamento dos serviços de bem-estar.
Poderia ter sido previsto que os negros, especialmente as mulheres negras, que, em muitas instâncias, tinham sido os últimos a serem contratados, seriam os primeiros a serem demitidos. Mesmo que o capitalismo tenha ajudado a reproduzir o racismo como um método de superexploração, esse sistema se baseia e se aproveita do racismo, culturalmente enraizado na sociedade americana. Assim, não é tanto uma questão do que veio primeiro, o ovo ou a galinha, mas de reconhecer a interdependência e a interconectividade entre racismo, capitalismo e patriarcado.
O aumento da desigualdade racial, sustentado pelo encarceramento em massa e pela violência do Estado (simbioticamente relacionados com a violência íntima), está atualmente sendo desafiado pelo movimento Black Lives Matter. É possível argumentar que o efeito de ter um presidente negro é iluminar mais intensamente o caráter estrutural da injustiça racial.
No Brasil, como nos EUA, negros e pobres são frequentemente alvos da polícia e enchem as cadeias. Como analisar e superar essa situação?
Desde antes do tempo em que fiquei em prisões em Nova York e na Califórnia, por 18 meses, foquei minhas energias em campanhas para a libertação de presos políticos e de outros presos, contra a repressão prisional e
pela abolição do encarceramento como forma principal de punição. O uso da polícia e das prisões para gerenciar as populações negras remonta à era da escravidão e, especialmente, ao período imediatamente posterior à emancipação. Em certo sentido, os EUA -e encontramos uma situação paralela no Brasil- são ainda assombrados pelo fracasso em aboli-la completamente. Assim, policiamento e prisão se tornaram os exemplos mais óbvios do racismo estrutural. A abolição dos vestígios da escravidão requer hoje a abolição de policiamento e prisões e a criação e fortalecimento de instituições sociais nas áreas de educação, habitação e serviços de saúde.
Em seu livro, a sra. conta a história de luta de muitas mulheres, negras e brancas, por emancipação e justiça. Como analisa a importância do movimento feminista hoje?
O feminismo —como tem sido transformado por movimentos de mulheres negras, latinas e indígenas— é uma dimensão indispensável das lutas radicais de hoje. Meu livro foi um esforço, entre muitos, de buscar ligar gênero, classe, raça, sexualidade etc. em vez de assumir que era possível efetivamente entender a realidade social usando apenas uma dessas categorias isoladamente. O feminismo, que tem crescente número de ativistas radicais, nos encoraja a nos concentrar em interconexão, interrelação e interseccionalidades.
No Brasil, o aborto é crime, permitido em poucos casos, e há forte pressão de religiosos para um veto total. Movimentos de mulheres estão ido às ruas para reivindicar a sua legalização. Qual a importância de legislação que o libere?
Os direitos ao aborto são fundamentais para as mulheres e a democracia. Mas eles não podem ser considerados separadamente de outros direitos reprodutivos, como o de ser livre do abuso da esterilização, do direito de ter filhos. Também não se pode assumir que uma vitória nesse campo para as mulheres ricas, que são capazes de arcar com os custos do aborto, seja uma vitória para as pobres.
O fracasso em sustentar uma estrutura mais ampla levou à suposição de que o caso Roe versus Wade [que definiu o direito ao aborto], na Suprema Corte, em 1973, era uma vitória definitiva. Agora reconhecemos que, apesar de as mulheres ricas e de classe média estejam sendo capazes de exercer seu direito ao aborto, as mulheres pobres, que não podem pagar, são efetivamente incapazes de exercer o seu direito. Portanto, cada vez que estivermos à beira de uma vitória legislativa é sempre importante perguntar -quem se beneficia?
Outro tema de seu livro é o estupro. No Brasil, existe o que é definido como uma “cultura do estupro”, que encoraja e valoriza, às vezes de forma velada, atos de violência contra as mulheres. Como o Estado e as mulheres devem enfrentar essa questão, especialmente em países como o Brasil, com forte tendência machista?
A violência de gênero é a forma mais generalizada de violência no mundo e é frequentemente assumido que a única forma de purgar nossas sociedades dessa violência é enviar os responsáveis para a prisão. Um número significativo de homens condenados por estupro está agora em prisões em muitas partes do mundo, mas isso não tem levado à redução na incidência do estupro.
No Brasil, nos EUA e em países de todos os lugares, vamos ter que desenvolver abordagens abolicionistas para acabar com a violência de gênero. Isso significa, entre outras coisas, que teremos que envolver os homens na linha de frente da luta contra a violência de gênero. Assim como na campanha pelo direito ao aborto, teremos de colocar essa luta dentro de um contexto muito maior: a violência de gênero, num nível individual, está ligada à violência institucional e, de forma importante, à violência do Estado.
Violência militar, violência policial, violência prisional incorporam e ajudam a reproduzir o estupro e outras formas de violência de gênero. Em outras palavras, a luta para acabar com o estupro é sobre muito mais do que eliminar o estupro em nossas sociedades.
A sra. foi candidata a vice-presidente dos EUA, competindo pelo Partido Comunista. Como avalia hoje a ideia de comunismo e qual é a sua visão sobre as eleições norte-americanas deste ano?
Eu fui membro do Partido Comunista até 1991 e me envolvi em uma série de campanhas eleitorais, inclusive naquelas das quais eu participei diretamente. Embora eu não seja mais integrante do Partido Comunista, eu ainda estou convencida de que nós não avançaremos em nenhuma de nossas lutas principais se não formos capazes de desafiar e finalmente desmantelar o capitalismo.
O movimento anti-violência —seja violência de gênero ou racial— é também um movimento anti-capitalista. Infelizmente, muitos de nossos problemas mais importantes não estão sendo verdadeiramente representados nessa atual campanha eleitoral.
O sistema eleitoral bipartidário não permite dar expressão à política radical dentro dessa arena. No presente momento, nosso objetivo eleitoral mais importante é impedir a eleição de Donald Trump.
Caso contrário, teremos de olhar para os movimentos de massa -como o Black Lives Matter, por exemplo- como a melhor expressão de nosso desejo coletivo de eliminar as violências raciais e de gênero.