Todas as bailarinas se comprometem com os rituais das sapatilhas de ponta. Mas só as bailarinas negras precisam dar mais um passo.
(HuffPost Brasil, 07/10/2016 – acesse no site de origem)
Em uma cena do documentário de balé First Position (“Primeira Posição”) a câmera foca brevemente na mãe da bailarina Michaela DePrince nascida em Sierra Leone.
Com o tutu nas mãos, Elaine DePrince realiza uma tarefa aparentemente inofensiva ao pintar o tutu e as cintas da sua filha, uma bailarina negra.
Cuidadosamente ela aplica uma tinta marrom em cada centímetro da antiga peça pálida de roupa, fazendo questão que o que sobre em branco seja coberto com um marcador escuro.
Em um mundo onde a expectativa é que as bailarinas saibam fazer coques impecáveis, costurem as fitas das sapatilhas de ponta de forma perfeita e, além disso tudo, manipulem seus corpos e acessórios para que se adaptem a certos ideais, pintar tutus pode ser interpretado também, para quem olha de fora, como mais um ritual da dança. Como se todo mundo tivesse que fazer isso.
Mas em um mundo que é ao mesmo tempo dominado por corpos brancos, um mundo que apenas recentemente foi testemunha da primeira bailarina principal afro-americana (Misty Copeland) do American Ballet Theater, que esconde uma história de racismo sutil dentro da sua própria instituição, o ato de pintar um tutu de cor “neutra” torna-se representativo, tanto para quem está dentro como fora das paredes do estúdio, dos obstáculos específicos que as bailarinas negras enfrentam hoje em dia.
Semana passada, Chyrstyn Fentroy, integrante do Dance Theatre of Harlem, publicou uma foto no Instagram (vista acima) ― foto feita durante o processo de pintar suas sapatilhas de ponta na cor “nude” para poder combinar com o seu tom de pele.
Isso nos lembra o vídeo de Eric Underwood, o solista no The Royal Ballet, publicado no seu Instagram semana passada, mostrando como ele aplica pó de maquiagem nos seus próprios sapatos.
Um vídeo publicado por ericunderwood (@ericunderwood) em
Fiquem sabendo @bloch_eu @grishkoworld e #sanshaballetshoes que se vocês criarem mais de Um tom de pele nós te amaremos pra sempre!!
Em uma legenda que acompanha o vídeo, Underwood pediu às empresas de roupas e acessórios de dança introduzissem mais de uma tonalidade de pele aos seus inventários de sapatilhas de balé. Quando ele publicou a foto não conseguiu comprar nada além da tradicional “sapatilha rosa de balé” .
“Não poder comprar sapatos me lembra que sou anormal e que não mereço a mesma consideração dada a outros bailarinos” explicou Brooklyn Mack, um colega bailarino, à rede BBC após a publicação de Underwood.
Fentroy, que atualmente está se recuperando de uma lesão, escreveu em sua legenda de foto:
“Hoje é dia de pintar” e incluiu a hashtag #keepingbusyformysanity (#ficoocupadapelasanidade). Quando perguntamos porque publicou a imagem, ela explicou ao The Huffington Post por email que queria que seus fãs pudessem dar uma olhada no processo de ser uma bailarina profissional. Parte desse processo, notou, inclui aplicar tinta acrílica em cor da pele ― criada especificamente para ela pela equipe de figurinos do Dance Theatre de Harlem ― nas suas sapatilhas de balé.
“Atualmente, que saiba, não há empresas de sapatilhas de ponta que criem sapatos em cor da pele” acrescentou. “Eu já vi sapatilhas em vermelho e preto antes, mas essas são as únicas cores pré-fabricadas que encontrei. Às vezes algumas empresas têm diferentes tons de cor-de-rosa, mas nenhuma que eu tenha visto são muito diferentes da cor padrão”.
A “cor normal” é claro, é de um tom similar ao do esmalte da Essie chamado “ballet slippers” (sapatilhas de balé). Assim como as indústrias de beleza e da moda, as empresas de roupas e acessórios de dança tendem a usar o termo “nude” para se referir aos tons pálidos.
Esses tons de cor-de-rosa ou pálidos são um óbvio problema para as bailarinas e bailarinos negros. Embora as bailarinas brancas possam usar meias, collant e sapatilhas na cor “nude” para conseguir uma forma consistente ao curvarem tronco, pernas e braços nas posições de balé, os bailarinos negros são forçados a buscarem tintas que opacam o brilho de suas sapatilhas ou outras soluções imperfeitas comograxa de sapato e o uso de maquiagem, para obterem os mesmos resultados.
“Se eu uso sapatilhas cor-de-rosa porque minha pele não é nem um pouco parecida a essa cor, a imagem que passa é pouco fluída e menos atraente de se olhar”, explicou Fentroy.
“Adoraria ter sapatilhas de cor da pele e gostaria de pensar que realmente não importa qual é sua cor da sua pele, ter sapatilhas que criam uma linha contínua desde o topo da sua perna até a pontinha dos seus pés permite que a audiência se concentre em todas as coisas belas que existem no seu corpo como bailarina e não no que você está vestindo”.
Uma foto publicada por Brown Girls Do Ballet® (@browngirlsdoballet) em
Prep. De Ponta. Melhoras @chyrstynmariah!😘 Adoramos você!
Entretanto, para algumas bailarinas negras, abandonar o histórico traje rosa em favor de outros tons de pele “pouco convencionais” pode ser difícil. Em uma publicação no blog Brown Girls Do Ballet, a bailarina Selena Robinson ponderou suas opções entre meias marrom que combinam com seu tom de pele ou as de cor-de-rosa que a maioria das bailarinas usam.
Vestir rosa, apontam várias bailarinas, faz parte de manter a uniformidade entre os corpos das bailarinas de balé e significa fazer uma performance sintonizada.
“Caso eu me mantenha fiel à tradição e use cor-de-rosa ou personifique no Dance Theatre e use marrom” escreveu, “O que mais quero é me sentir confortável na minha linda pele morena e dançar para mim mesma”.
O Dance Theatre of Harlem, companhia historicamente composta de afro-americanos e outros artistas de várias raças, é conhecido por incentivar várias meias, collants e sapatinhas de cor da pele e, de acordo com a foto de Fentroy, a empresa oferece calças originais que combinam com a pele de cada bailarino.
Fentroy ― que cresceu vendo como as sapatilhas de ponta eram cor-de-rosa e “era assim que tinha que ser” ― diz que nunca foi criticada por usar sapatilhas dessa cor hoje em dia.
“Todas as escolas e companhias de dança têm uma pratica diferente sobre o que os bailarinos fazem com suas sapatilhas de ponta”, disse. “Acho que muitas escolas que são predominantemente [compostas de] bailarinos negros estão começando a praticar a ideia de ter sapatilhas de cor de pele, mas não todas.
No Dance Theatre of Harlem, é padrão para os integrantes da companhia sempre ter sapatilhas e meias cor da pele e faz parte do código de vestuário dos alunos”.
Parabéns aos nossos algunos do Intensivo de Versão que participaram da performance com os integrantes da companhia!!! Estamos orgulhosos! #DanceTheatreofHarlem
Embora Fentroy tenha notado um aumento de interesse nos sapatos pintados em cor da pele entre bailarinos negros, ela ainda não encontrou uma empresa oficialmente capitalizada para atender a demanda.
No início do ano, o fabricante de sapatilhas de balé Bloch anunciou que estava fazendo uma série de sapatilhas para bailarinos que não são brancos, mas ainda não foram comercializados. (Só para deixar claro, a Misty Copeland usa sapatos do Bloch Axiom e usa uma base de maquiagem que combina com seu tom de pele, explicou seu assessor de relações públicas em um comunicado ao HuffPost.)
Collants e meias estão disponível através de alguns fabricantes, mas Fentroy e outros bailarinos negros continuam a pintar suas sapatilhas ― além de costurar as cintas e fitas elásticas, cortando as solas no tamanho certo, colando suas sapatilhas de ponta e ensopando seus pares em água até que apareçam os arcos únicos de seus pés.
Afinal, todas os bailarinos se comprometem com os rituais das sapatilhas de ponta. Mas só os bailarinos negros precisam dar um passo mais.
Enquanto estrelas importantes do balé como o Misty Copeland, descrita como “uma garotinha morena em um oceano de brancura” ainda forem consideradas como bailarinas “pouco prováveis”, o simples fato de pintar um sapato para fazer com que a convenção seja adaptada torna-se algo poderoso. Transforma-se em algo que nos faz lembrar que o balé tem muito por melhorar.
“Mal posso esperar o dia em que as sapatilhas de ponta em vários tons de pele sejam criadas”, concluiu Fentroy “e eu acho que esse dia está chegando”.
Esse artigo foi atualizado para incluir um comunicado da assessora de relações públicas de Misty Copeland’s. Nós entramos em contato com a empresa Bloch para saber se eles planejam produzir uma linha de sapatos de tons cor da pele, mas ainda não obtivemos resposta.
ESCLARECIMENTO: A linguagem utilizada acima foi alterada para deixar claro que Misty Copeland foi a primeira afro-americana bailarina principal no American Ballet Theater. Caso esteja curioso, Lauren Anderson foi a primeira bailarina principal afro-americana de todos os tempos para uma companhia de dança importante― a Houston Ballet ― em 1990.