Alexandra Loras nasceu na periferia de Paris. Filha de mãe francesa e pai gambiano, é a única negra entre cinco irmãos. Descobriu que tinha a cor da pele diferente das pessoas ao redor ainda no jardim de infância, quando uma amiguinha boa de desenho fez um retrato seu usando apenas lápis marrom. Levou um susto.
(HuffPost Brasil, 15/10/2016 – acesse no site de origem)
A surpresa inicial com a diferença se tornou agressividade à medida que crescia sendo rejeitada pelos meninos na escola. Na época, não entendia a influência do racismo em seu dia a dia. Articulada, teve diferentes empregos no final da adolescência. Foi babá na Alemanha, nos EUA e na Inglaterra, além de webdesigner e professora de francês.
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Nessa trajetória de exceções, Alexandra foi também a única entre os irmãos a estudar na prestigiada IEP (L’École Livre de Sciences Politiques), de Paris, instituição onde se forma a elite política da França. Após se graduar em jornalismo, chegou a ser apresentadora de TV. Nesse meio tempo, conheceu e se casou com Damien, diplomata de família aristocrática.
Mudou-se para São Paulo em 2012 quando o marido tornou-se cônsul francês no Brasil. Atenta às questões raciais desde os tempos de solteira, a então consulesa se deu conta de que por aqui o peso do racismo era maior do que em qualquer outro lugar que havia pisado.
Passou então a atuar como ativista no País, propondo a líderes empresariais discussões sobre diversidade dentro das corporações. Em setembro, Damien Loras deixou o cargo, mas a família decidiu ficar, para que Alexandra possa seguir com seus projetos de luta contra a discriminação racial por aqui.
Um curso de pós-graduação e um livro sobre os grandes personalidades negras da história mundial estão entre as próximas realizações da ativista que também é fundadora do Fórum Protagonismo Feminino.
Dias antes de deixar a residência consular da França em São Paulo, Alexandra recebeu o HuffPost Brasil para um bate-papo sobre identidade negra e o racismo no Brasil. Em pouco mais de uma hora de conversa, a ativista oferece dados, concatena raciocínios e insights que acabam provando por A mais B seu ponto de vista — o de que o Brasil é um país extremamente racista, distante da famigerada ideia de democracia racial. Os principais pontos desta conversa estão elencados a seguir:
Ativismo no Brasil
Fiquei um bom tempo na sombra de Damien acompanhando o acompanhando em eventos. Fui, inclusive, presidente das consulesas de São Paulo. Até que um dia ele me perguntou: “Por que você não vai trabalhar?”. Eu já havia passado os dois primeiros anos do Rafael [filho do casal, hoje com 5 anos] junto com ele em casa, então decidi me mover. Professoras e diretoras de escolas públicas me chamavam, dizendo: “Você poderia vir fazer uma visita às nossas crianças? Porque eles não têm uma referência de pessoas negras na elite”. Fiquei empolgada com as propostas, mas ao mesmo tempo não queria ir até eles apenas para tirar selfies e fazer como a Lady Di: “Ah, sou muito bem-sucedida. Tadinhos deles, vamos posar para uma foto”. Queria mostrar para essas crianças o que me ajudou a resgatar a autoestima. E isso é um trabalho diário, porque você está aqui falando comigo sobre essas coisas e as lágrimas já começam a aparecer. Comecei então a fazer palestras. A primeira foi horrível. Falei sobre os zoológicos humanos, sobre escravidão e percebi aqueles jovens se fechando. Eu precisava sair daquele caos. Comecei então a falar sobre as grandes figuras negras: o inventor da geladeira, do marca-passo, da antena parabólica, falei de Teodoro Sampaio, André Rebouças e Machado de Assis. E aí vi uma luz brilhando nos olhos deles. Ao final, abracei todos e muitas crianças choravam. Foi uma coisa muito visceral. Naquela ocasião caiu minha ficha: “Achei minha missão”. Durante 20 anos, eu passei pedindo para o universo, para Deus, que me ajudasse a achar minha missão. Eu fui web designer, jornalista, professora de francês, fui babá na Alemanha, na Inglaterra, nos EUA, em um sistema que me permitia viajar gratuitamente e aprender outros idiomas. Fiz muitas coisas. Fiz sete anos de TV e não gostei do meu trabalho um dia sequer. Hoje eu entendo por que tive que passar por todas essas etapas: para ser boa no que estou fazendo hoje.
Invisível na residência consular
Quando os jornalistas se interessaram por mim, uma consulesa da França, negra, os assuntos abordados eram glamour, moda, vinho, champanhe, vinho, gastronomia francesa e coisas do tipo. Mas sempre consegui colocar questões de militância nas conversas. Compartilhava com eles uma das coisas que mais me deixavam chocada. Durantes os eventos na residência consular, o protocolo pede que a consulesa fique na porta recepcionando os convidados. Cerca de 6 mil pessoas passam por ano pela casa consular. E em muitas vezes eu era ignorada por brasileiros, que passavam na minha frente, sem me cumprimentar, achando que eu era funcionária da casa. Ou falavam: “Moça, onde eu posso colocar esse casaco?”. Isso era violento, paralisante, mas o que eu podia fazer? Eu era a anfitriã, então tinha que ficar feliz, agradável, leve. Mas isso machuca a gente. Porque sou um ser humano igual a você.
Racismo nada velado
O racismo é muito mais forte no Brasil do que em qualquer lugar por onde passei. Aqui nós não somos minoria. Pelo contrário, somos uma maioria. Então o problema é muito mais grave. Em outros lugares do mundo a questão racial pode ser tratada com descaso, por estar relacionada a uma pequena parte da população. Mas aqui é totalmente diferente. Há quem diga que o racismo no Brasil é velado. Não é velado de jeito nenhum. Estamos num País que ainda está numa dinâmica de feudalismo que, inclusive, choca os gringos. Uma dinâmica de ricos e pobres, em que os mais abastados são servidos pelos mais pobres, sem ninguém questionar. Aliás, ninguém questiona o uniforme branco das babás por aqui, que nada tem a ver com higiene. Tem a ver, sim, com o período da escravidão, quando as mulheres escravizadas trabalhavam na casa-grande. Elas tinham que se apresentar sempre de branco, limpinhas, para se diferenciar dos negros escravizados que trabalhavam no campo. Esse uniforme já era uma questão de status. Em nenhum outro país as babás estão vestidas de branco, só no Brasil.
Onde está a Beyoncé brasileira?
O que as pessoas têm que se atentar é que em 1830 cerca de 88% da população do Brasil era formado por negros. Houve então um planejamento para embranquecer a nação, pois os governantes tinham medo da formação de um país, grande e forte, por uma população negra que poderia se rebelar e aplicar algum tipo de retaliação no futuro. E funcionou muito bem. Essa ideia de que somos um povo miscigenado é resultado da prática de um bom plano. Quando falo que o racismo é mais forte no Brasil é porque aqui vejo a maioria dos negros com baixa autoestima, o que não se vê nos EUA ou na Inglaterra, por exemplo. Nos EUA, até os anos 60 não podíamos entrar nos mesmos lugares que pessoas brancas. Não podíamos entrar nos mesmos banheiros e restaurantes. Sentar nos mesmos assentos no ônibus. E nos últimos 50 anos de cotas raciais, temos o Barack Obama na presidência; Ursula Burns, CEO da Xerox; Spike Lee, Beyoncé. Então eu pergunto: onde está a Beyoncé brasileira? Onde está o Spike Lee brasileiro? Onde está o candidato negro a presidência do Brasil? Bom, aqui temos a Marina Silva, mas ela não levanta essa bandeira. Eu não sei nem se ela se considera negra. E essa é outra questão a ser discutida. Existem tantos negros com o mesmo tom de pele que o meu que não se consideram negros, por acharem essa uma condição ruim. E tem também a questão do cabelo crespo. Em nenhum outro país eu ouvi coisas como “cabelo ruim” ou “cabelo duro”. Isso é muito forte aqui. E são adjetivos reproduzidos pelos próprios negros aqui.
África, berço da humanidade
A ideia de que a África é o berço da humanidade é também uma forma de nos inferiorizar. Quando se fala que todos são descendentes da África, querem dizer basicamente que a ordem de evolução é: o macaco, o negro africano e os povos civilizados. Eu gosto de questionar essas teorias. Porque se você olhar a eugenia, era considerada uma ciência exata à época e se falava: “O ariano, loiro, é um ser humano superior a todas as outras raças”. E muitos cientistas aprovavam essa teoria. Até ela ser usada pelos nazistas, ela era tida uma ciência exata. Imagine agora se ele não tivesse sido usada pelos nazistas. Como seria? Mas ainda vivemos resquícios desse cenário. Hoje, no mundo, existem apenas 2% de pessoas originalmente loiras. E por que mulheres escolhem pintar o cabelo de loiro? Porque traz privilégios, traz uma narrativa de superioridade.
Educar pelo bem da diversidade
Por que não vemos uma família de pessoas negras promovendo um comercial de margarina? Pasta de dente? Fraldas? Quer dizer que não usamos nenhum desses produtos? Por que nunca se viu um negro historicamente nas campanhas de marketing brasileiras? Isso pra mim é um racismo violento. Porque se fala do Brasil lá fora como uma democracia racial, uma grande miscigenação, com tudo resolvido. Quando cheguei aqui pensei que veria 50% de negros protagonistas nas novelas, em cargos de liderança, nas empresas, nos desenhos animados. E não estão. E fiquei chocada, porque no Brasil as mulheres saem mais diplomadas que os homens das universidades. E por que apenas 6% das mulheres ocupam postos executivos nas empresas? Porque o ser humano vai sempre favorecer uma pessoa que se parece com ele. Então, um homem branco vai sempre favorecer outro homem branco. Se não educarmos as pessoas para enxergarem o negro como igual, a mulher como igual, a pessoa com deficiência física como igual, vamos ficar estagnados nessa condição de poucos com privilégios.
O estereótipo do negro pobre
Acho interessante a gente parar para pensar no quanto o negro é anulado na sociedade brasileira. Não precisa existir uma placa “Só para brancos” no shopping Iguatemi para ele não ir almoçar lá. E não é por uma questão financeira também. Os negros consomem 1 trilhão e meio de reais por ano no Brasil. Aqui não existem só negros pobres, o estereótipo da empregada que mora na favela. Estudos recentes mostram que 1% dos brasileiros detêm 60% da riqueza do País. Desse total, 7% são negros. Quando li isso perguntei: onde eles estão?
Talentos desperdiçados
Eu participei de um treinamento de dois dias no YouTube para melhorar a performance do meu canal e das minhas rede sociais. Lá eu conheci uma quantidade enorme de formadores de opinião negros. E fiquei chocada. São tantas pessoas super hypes, super trends, bons de comunicação. E percebi que ninguém está falando deles. Existem vários youtubers negros com milhares de seguidores e ninguém está falando deles. Para mim, esse é o futuro da comunicação. E me aproximei para trabalhar a questão da autoestima deles, quero que eles aceitem patrocínio de marcas pelo trabalho que têm feito. Porque os youtubers brancos cobram, e cobram caro pelo que produzem. Vejo que o Brasil está se privando desses talentos, só enxergando os negros como coitadinhos, pobres e favelados. O carnaval, por exemplo. A produção do carnaval sai na hora. É super bem-organizada, tudo é impecável, dá certo. É uma das maiores festas do mundo. E quem são as pessoas por trás do carnaval? São os negros e pobres, que não acredito que são carentes. A questão é que muitos talentos não foram explorados para se destacar. Não precisamos daquela mulher apertando o botão no elevador. Tampouco daquela pessoa para colocar gasolina no carro. Em que país você vê esse tipo de emprego de pessoas? Só no Brasil, país que é a 9ª maior economia do mundo. Não dá mais para ter 80% da população ganhando R$ 3 mil reais por casa. Não dá mais. Vamos ter que mudar a quantidade pela qualidade. E deixar esse povo ter dignidade econômica para também poder consumir.
Brancos escravizados
É preciso lembrar que o branco também foi escravizado, mas toda a narrativa foi construída de outra forma. Porque houve o feudalismo. Os castelos da França, por exemplo, não foram construídos de acordo com normas trabalhistas, com 35 horas semanais, final de semana de descanso. O branco foi escravizado, mas a sua narrativa não conta isso. O que contam é que sempre tiveram dignidade, sempre foram poderosos. Ao observar toda essa construção narrativa dos livros vejo que podemos contar o que queremos. Quem vai lá verificar?
“Conversão de racistas”
Acredito que uma pessoa pode deixar de ser racista. Eu já “converti” várias. É preciso educar com empatia e paixão. E aqui no Brasil isso também é particularmente possível por conta da formação acadêmica diferente da europeia. Aqui vocês estão muito mais ligados ao corpo e à conexão humana. Então, ter empatia é muito mais fácil do que na Europa. Lá, nós não sentimos nada no corpo. O corpo é feito para segurar as cabeças cheias de informação. Desenvolvemos muito as qualidades mentais, deixando o corpo em segundo plano. Quando vocês beijam ou abraçam alguém estão automaticamente filtrando a energia dessa pessoa, verificando se ela está bem. Vocês nem se dão conta do valor disso nas relações humanas.
Amauri Terto