No último dia 20 de outubro, ocorreu na Universidade Federal de Rondônia (UNIR) um episódio de ataques machistas contra uma aluna e uma advogada, que ganhou repercussão na mídia e nas redes sociais.
(Jota, 28/10/2016 – acesse no site de origem)
O ataque ocorreu após Sinara Gumieri, advogada, mestra em Direito pela Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis (Instituto de Bioética) ter dado uma palestra para os alunos da Universidade Federal de Rondônia sobre a importância de se falar sobre gênero no direito.
Indignado que esta temática tenha sido trazida a uma palestra em uma Faculdade de Direito, o professor Samuel Milet, durante uma aula de Direito das Sucessões, proferiu palavras de baixo calão à palestrante, chamando-a de “sapatona doida“, “bostinha” e proferindo frases como “Aquela vagabunda, entendeu? Defensora de aborto, de gênero. Vagabunda. Mande pra ela me processar, que eu provo que ela é.”
Não bastando ofender duramente uma colega de profissão, o professor ainda submeteu uma aluna que contestou sua atitude a um debate agressivo por cerca de quinze minutos, no qual utilizou sua posição de comando para constranger a estudante.
As falas do professor foram gravadas em áudio, no qual se percebe uma série de agressões verbais por razão de posicionamentos sociais, políticos e ideológicos, direcionadas a qualquer um que estivesse presente na palestra. Ademais, na fala pode ser percebida uma série de preconceitos dirigidos a camadas sociais, em especial a pessoas LGBTI. O áudio foi publicado pelos alunos, gerando grande repercussão ao caso, o que levou à criação de um abaixo assinado exigindo a punição do docente e diversas notas de repúdio por parte de coletivos universitários, professores, pela Defensoria Pública do Estado de Rondônia e pela Seccional de Rondônia da Ordem dos Advogados do Brasil.
O que despertou tanto ódio no professor, para que tivesse esse tipo de atitude? Sinara Gumieri é uma mulher, jovem, acadêmica, ocupando um espaço público de fala e de poder. Ocupando esse espaço justamente para apontar a desigualdade de gênero que existe na nossa sociedade e, consequentemente, no âmbito do direito. E a misoginia não tolera que mulheres tenham acesso a essas esferas, que ainda são predominantemente masculinas.
Embora seja absurdo o que se passou naquela sala de aula, este episódio não foi isolado. Foi apenas mais uma demonstração de como o machismo ainda está impregnado no âmbito jurídico e uma prova viva de como precisamos falar de gênero no direito.
Neste ano vários episódios análogos vieram à tona. A violência institucional de gênero foi marcada pelas declarações do delegado Alessandro Thiers, responsável pela investigação do caso de estupro coletivo de uma jovem de 16 anos no Rio de Janeiro, que ocorreu em maio deste ano. A vítima teve sua conduta moral questionada e seu depoimento desacreditado pelo então delegado. Ele foi afastado da titularidade da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática e o Ministério Público abriu um inquérito contra a sua conduta no caso.
Outro caso que chamou a atenção em agosto deste ano aconteceu no Rio Grande do Sul. Em meio a uma audiência, o promotor de justiça Theodoro Alexandre da Silva Silveira humilhou uma menina menor de 14 anos, vítima de estupro pelo próprio pai e que havia engravidado por conta da violência sexual sofrida, realizando por isso um aborto legal. A cena foi testemunhada pela juíza da vara, a qual não interrompeu essa violência. O Conselho Nacional do Ministério Público foi oficiado para investigar o caso.
Em relação especificamente ao ambiente acadêmico, tivemos diversas manifestações de estudantes de Direito contra o machismo dentro das universidades. Alunas da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do campus São Paulo e do Rio de Janeiro, da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Universidade de São Paulo (USP) encheram seus pátios com cartazes contendo frases opressoras proferidas por docentes, como: “agora vamos explicar de novo, porque a sala tem muitas meninas” ou “a escravidão foi abolida, mas pelo menos ainda temos as mulheres”. Denúncias relativas a assédio sexual nesses lugares também surgiram na pauta pública.
É evidente, portanto, que discutir gênero no mundo do direito é completamente necessário para que evitemos episódios como estes.
Por que falar de gênero no direito?
Conforme se nota em todos os episódios acima relatados, o mundo jurídico ainda é permeado por uma forte carga machista. Em que pese nossa Constituição Federal determinar a igualdade entre homens e mulheres, o que se verifica é que, na prática, as mulheres ainda estão em posição de inferioridade.
Não adianta falar em igualdade na lei se os próprios operadores do direito não respeitam essa premissa e imprimem suas opiniões pessoais e misóginas na hora de aplicar as regras legais. E este posicionamento subjetivo somente conseguirá ser superado quando a pauta de gênero estiver presente para além da lei, seja nas discussões legislativas, na jurisprudência, nos debates acadêmicos nas salas de aula das Faculdades de Direito.
Sem que a formação consiga escapar do simples viés dogmático – a “leitura de códigos” -, será impossível transformar o universo jurídico em uma realidade capaz de verdadeiramente reparar injustiças e garantir o cumprimento dos direitos humanos. Da maneira como a formação jurídica é hoje, não surpreende que o direito seja uma arena de revitimização e de manutenção de desigualdades.
É importante também esclarecer que há muita ignorância quando falamos de “ideologia de gênero”.
As falas do próprio professor Samuel Milet demonstram a falta de conhecimento sobre o que verdadeiramente significa discutir gênero no direito. Muito se propaga um discurso deturpado e odioso de que a “ideologia de gênero” seria uma doutrinação a fim de impor a toda a sociedade a transexualidade ou a adoção de orientação sexual homoafetiva. Na verdade, quando falamos da inserção da pauta de gênero, o que se busca é efetivar a igualdade material prevista pela Constituição Federal a todas as pessoas, independentemente de gênero, sexo ou orientação sexual, de forma que todos os indivíduos possam ser livres de qualquer tipo de discriminação.
Grandes avanços como a edição da Lei Maria da Penha e da Lei do Feminicídio, o reconhecimento da união civil homoafetiva e a possibilidade de utilização do nome social por pessoas transgêneras não seriam possíveis se não discutíssemos gênero no direito. E ainda há muito por avançar, razão pela qual este debate deve se intensificar ainda mais e não pode intimidar diante de confrontações como a do professor.
Demandas como a criminalização da LGBTIfobia, do assédio sexual nas ruas, da legalização do aborto e outras somente poderão avançar quando tivermos uma discussão de gênero consolidada na seara social e jurídica.
E mesmo nos pontos onde tivemos avanços legislativos, o despreparo de muitos operadores do direito ainda é gritante. No próprio discurso do professor Milet se evidencia, por exemplo, como ainda há forte desconhecimento do que significa “gênero” quanto à aplicação da Lei Maria da Penha. Para Milet, a lei somente poderia ser aplicada a pessoas biologicamente do sexo feminino. Contudo, a lei é clara quando diz que se baseia em violência de gênero, o que, por consequência, estende sua aplicação também a mulheres transexuais e travestis. Neste sentido, já houve inclusive decisão do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais afirmando que a Lei Maria da Penha se aplica a casos de agressões a mulheres transexuais e travestis que não fizeram cirurgia de mudança de sexo e não alteraram o nome ou sexo no documento civil.
Esse despreparo para as questões de gênero perpassa ainda diversas outras áreas do direito, a começar pelo atendimento às mulheres vítimas de violência que recorrem às delegacias. Os operadores do direito, nestes casos, sequer parecem compreender o conteúdo das leis, pois destratam e desacreditam em suas palavras, agindo de maneira completamente contra legem.
Nos tribunais esse cenário não é muito diferente. As varas da família e seus técnicos têm muita dificuldade em lidar com esse tipo de problema, não tendo qualquer escrúpulo em chamar mulheres de “loucas” ou de “ressentidas”, na mesma linha de raciocínio do professor Milet.
Por fim, a fala do professor para legitimar seus preconceitos – “Mande ela me processar, que eu provo que ela é [vagabunda]” – apenas evidencia a sua confiança num direito que está preparado para protegê-lo e invisibilizar os danos sofridos por mulheres e outras minorias.
Será que o professor de fato não conseguiria convencer em juízo que Sinara ou sua aluna são “vagabundas” e com isso legitimar e justificar sua conduta completamente abusiva? Será que o nosso Judiciário não está mais preparado para dialogar com o algoz do que com a vítima? São por essas e outras questões que precisamos falar de gênero no direito.