Vivência de direitos pelas mulheres no contexto da epidemia de arboviroses

25 de outubro, 2016

“Ela [a médica] achava bonito eu grávida!”

(UNFPA, 25/10/2016 – acesse no site de origem)

Recife, Pernambuco – Em Passarinho, comunidade periférica de Recife, tem cerca de 25 mil habitantes, na sua maioria afrodescendente. Aqui, onde todas as ruas têm nome de passarinho, as mulheres sonhavam com uma luta organizada pela liberdade, autonomia e garantia de direitos. Um sonho que se tornou possível no ano 2000 com a criação do “Espaço Mulher”. Aqui homem não entra e são as histórias de mulheres e os problemas da comunidade que pautam a agenda.

“Eu fui mãe de treze filho, quatro aborto e nove de tempo. Achei pouco e ainda criei mais dois neto da primeira filha, também era outra doida que não tomava conta dos menino. Aí eu criei, quando estava tudo grande eu disse: já tá’ tudo criado, acaba de criar o resto. Aí eu tenho uns três, quatro bisneto já” (sic), diz Marina.

Viúva faz seis anos, Marina José dos Santos, assim é seu nome, conhece finalmente seus direitos fundamentais. Uma vida marcada pela violência obstétrica e pela violência doméstica, ela segue trabalhando pelos direitos das vizinhas e companheiras de luta.

“Ela [a médica] achava bonito eu grávida! Um dia, estava dando de mamar a outro, vi a minha barriga mexendo e fui para a doutora:
– Doutora, eu tenho um bicho na minha barriga!
– Vamo’ fazer exame Marina, dizia ela.
Quando vinha o resultado e eu sabia que era gravidez, o choque: eu estava grávida de novo!
– Mas doutora eu tou dando de mamar, a mãe que tá dando de mamar fica grávida? Depois que a menininha fazia um ano chegava outra! Uma nasceu no dia 4 de abril e a outra a 25 de abril. Aí eu disse: mas doutora, outro menino…

Aqui homem não entra e são as histórias de mulheres e os problemas da comunidade que pautam a agenda.

“Eu tive esses menino tudinho e culpo a doutora porque ela viu que eu tinha esses problema, era eu ter feito uma ligação e não tinha esses filho todo”, desabafa.

Em sua juventude, Marina confiava em absoluto na médica que a acompanhava. Violência doméstica e depressão eram temas recorrentes na consulta. Pedidos de ajuda que nunca foram ouvidos.

“O que acontecia comigo eu corria e dizia à médica. Eu fazia o pré-natal mas eu perdia por causa de marido. Me aperreei muito com ele, arranjava umas mulher e passava as noite fora, chegava sujo de batom no outro dia, eu tomava aquela raiva, né? E com desgosto…aí eu perdia”, recorda Marina.

Em tempos de Zika, as promotoras do “Espaço Mulher” se uniram ao projeto do SOS Corpo, Instituto Feminista para a Democracia – “Vivência de direitos pelas mulheres no contexto da epidemia de arboviroses na cidade do Recife”.

A pesquisa participativa foi construída em parceria com grupos de mulheres que atuam em comunidades periféricas de Recife e na cidade de Pacira, no Agreste. O objetivo é subsidiar a luta das mulheres nas comunidades e criar novas capacidades nos grupos para enfrentar a epidemia.

Lixo acumulado, esgoto a céu aberto, fossa sem tampa e o rio de Passarinho poluído foram as primeiras observações de Clea e Magda. Moradoras de Passarinho há quase 20 anos, ambas foram mães muito jovens e aos 59 e 46 anos de idade já são avós.

– Meu sonho é fortalecer as mulheres para que elas saibam seus direitos, Clea.
– O meu é um dia ver Passarinho organizado, Magda.

Clea e Magda são educadoras sociais e representam as lideranças femininas da comunidade: “a gente fez um mapeamento, depois pegou nos questionários e foi de casa em casa conversando com as mulheres”.

“Uma coisa que a gente percebeu foi que as pessoas negavam que estavam doentes por causa do preconceito. Elas tinham medo que as pessoas achassem que elas eram sujas”, conta Clea que encontrou “pessoas muito pobrezinhas mas a casa muito limpa, pobreza não é sujeira! A culpa sempre está em cima da mulher”, disse indignada.

Em Passarinho, como em muitas outras comunidades vulneráveis, Zika e Chikungunya deixaram muita gente desempregada. Diaristas, empregadas domésticas e vendedoras autônomas perderam seus empregos devido às dores e falta de atendimento adequado.

“Eu tive Zika. Um dia fui-me deitar e no dia seguinte não me levantei. O médico disse apenas que era uma virose, passou remédio e pediu para voltar em 4 dias”, conta Magda. Quanto a Clea, ela foi a cuidadora do marido e da filha, ambos infectados com Zika.

Com o apoio de 75 mobilizadoras, o SOS Corpo identificou resultados com três dimensões como relata Verônica Ferreira, coordenadora da ONG:

1. “Fica muito flagrante que há uma relação direta entre as epidemias e a ausência absoluta de sanemaneto básico, todos os territórios nos quais a gente tem atuado vivem em condições precaríssimas de saneamento, vivem dificuldades no acesso à água e esgotamento sanitário;

2. A maioria das mulheres que a gente entrevistou adoeceu de Chikungunya. Um primeiro impacto dramático na vida é a questão da perda temporária das capacidades físicas e motoras que provocam limitações muito graves e impactam diferentes dimensões da vida: a própria saúde, a dificuldade de fazer as atividades dos dia-a-dia, o trabalho doméstico não remunerado, o trabalho remunerado, muitas mulheres relatam que ficaram sem ter como trabalhar;

3. São muito fortes os sentimentos de culpa porque nós vivemos numa sociedade em que as mulheres são socializadas para cuidar, e cuidam das outras pessoas. Passar por uma limitação que te coloque em situação de dependência, de ser cuidada, é algo que subjetivamente é vivido como vergonha e culpa. É um reflexo dessa cultura patriarcal. Então a gente tem exemplos dramáticos de mulheres que tiveram que ser banhadas pelos filhos e como foi difícil para elas lidar com essa situação.”

Verônica Ferreira alerta ainda que, segundo a pesquisa, estas mulheres – ela própria também foi afetada pela chikungunya – ainda se encontram limitadas fisicamente e continuam doentes.

Uma das medidas imediatas destas mulheres foi se unir para limpar os quintais e plantar frutas e legumes no lugar onde antes se acumulava lixo. Mas nos dias em que a água corre nas torneiras das casas nem sinal das mulheres. As ruas vazias fazem adivinhar que em suas casas as mulheres trabalham arduamente para compensar três longos dias sem água correndo.

“A água vem 11h da manhã, chega forte, mas depois diminui porque as pessoas abrem as torneiras ao mesmo tempo. Aí eu fico enchendo logo as coisas para ser a última a lavar roupa. Eu fico fazendo serão, minha filha!, lavando roupa. A água vai embora 8h, 8h30, se eu não ficar a noite todinha sem dormir quem lava a roupa até terminar?”, indaga Marina.

Além de líder comunitária, Marina segue sendo a cuidadora da família. Tem hoje ao seu cuidado seis netos em idade escolar. Segundo ela, a mãe das crianças “gosta de dormir” então ela é “mais avó”. Com o apoio das companheiras, a depressão foi embora e a viuvez lhe trouxe paz: “quando ele morreu pediu aos filhos para não me deixar passar fome”.

DE ACORDO COM A ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA É UMA EXPRESSÃO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA AS MULHERES CARACTERIZADA POR ABUSOS, DESRESPEITO E MAUS-TRATOS DURANTE A GRAVIDEZ E, PRINCIPALMENTE DURANTE O PARTO, NAS INSTITUIÇÕES DE SAÚDE. TAL TRATAMENTO NÃO APENAS VIOLA OS DIREITOS DAS MULHERES AO CUIDADO RESPEITOSO, MAS TAMBÉM AMEAÇA O DIREITO À VIDA, À SAÚDE, À INTEGRIDADE FÍSICA E À NÃO-DISCRIMINAÇÃO.

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