Chegou à Casa Branca entre críticas, mas Michelle Obama se despede do cargo como primeira-dama transformada em ativista
(El País, 28/10/2016 – acesse no site de origem)
Ninguém antes havia vestido o mesmo traje. O de primeira-dama dos Estados Unidos estava desenhado para mulheres brancas, em sua maioria trabalhadoras e que viviam à margem da política. Uma indumentária para navegar na linha fina de apoiar fielmente as políticas de seus maridos sem intervir em excesso. E nunca havia sido usado por uma mulher negra até que Michelle Obama o vestiu em janeiro de 2009.
Desde sua aparição na Convenção Nacional Democrata de 2008 até a de 2012, ela desenhou um arco de história que não deixou ninguém indiferente. Na campanha que levou à Presidência seu marido, Barack, começou uma negociação cujos termos ela escreveu sozinha a golpe de discurso, de silêncios calculados e de uma estratégia baseada na constância. Foi recebida na Casa Branca entre o ceticismo e as críticas por ter se declarado, em primeiro lugar, “mom in chief” (na tradução literal “mãe em chefe”, ou algo como, mãe no comando). Suas filhas, sua família, estavam na frente. Oito anos depois lembrou, no mesmo discurso em que apoiou Hillary Clinton ante os delegados na Filadélfia, que olhou os rostos da meninas pela janela no primeiro dia de colégio, acompanhadas pelo serviço secreto, e pensou: “O que nós fizemos?”.
Hoje restam poucas dúvidas de que sempre soube o que estava fazendo. Às expectativas de quem esperava um papel revolucionário por parte da primeira-dama com títulos em Harvard e Princeton, Michelle Obama respondeu com planos de atender às famílias dos veteranos de guerra, inaugurou a horta orgânica da Casa Branca e se fez presente na televisão, onde dançou hip hop e conversou com personagens de Vila Sesamo.
Pouco depois lançou seu controverso programa para reinventar os cardápios dos refeitórios escolares de todo o país, e quando Barack Obama foi reeleito, em 2012, a primeira-dama já havia sido declarada “o pesadelo do feminismo” nos EUA. Os primeiros quatro anos de trégua haviam terminado e alguns setores do país queriam ver sua versão mais ativista. Mas suas intenções eram outras. Ainda tinha que levar em frente sua campanha pela alimentação saudável e se tornar uma defensora da educação das meninas em todo o mundo, um projeto que levou este ano à Espanha.
Nunca escondeu seu ceticismo com a política, mas também não censurou sua visão do papel que deveria desempenhar como primeira-dama. Não se apertou para entrar nos modelos de suas predecessoras –vale como exemplo seu armário, destacado pela classe de um modelo Versace no último jantar de Estado– e, conforme se aproxima o final do mandato de seu esposo, tem revelado de maneira cada vez mais firme como se pode ser primeira-dama de todos os norte-americanos e servir de consciência para um país imerso em uma das campanhas mais retorcidas, agressivas e negativas das últimas décadas.
Michelle Obama se transformou nas últimas semanas em uma defensora tão importante quanto inesperada da candidatura de Hillary Clinton, e conseguiu explicar o inexplicável com uma linguagem que diz o que nenhum outro político pode pronunciar. Ela pode dizer que se “precisa de um adulto na Casa Branca”, continua tentando inspirar os jovens ao afirmar que “minha história também pode ser a de vocês” e sacode o país com a verdade de que “vejo minhas filhas brincarem no jardim de uma casa construída por escravos”.
Emoção, energia e empolgação
Nos seis eventos que protagonizou na reta final da campanha, em sua maioria em campus universitários, levou a emoção, a energia e a empolgação que faltam à candidata democrata. Michelle Obama não precisa mencionar Donald Trump porque quando faz referência à gravação sexista que fez a campanha explodir pelos ares milhões de mulheres norte-americanas estavam escutando uma voz familiar: a primeira-dama havia retirado a couraça e, com a voz embargada, lembrou “quantas mulheres não denunciaram atos sexistas porque pensamos que ao denunciar parecemos mais vulneráveis”.
Foi um discurso que será relembrado durante décadas como o momento em que a primeira mulher afro-americana a ser primeira-dama retratou sem mencionar seu nome a um candidato misógino, racista e que, em suas próprias palavras, “presume de um comportamento sexual predatório” com as mulheres. Os EUA acabam de conhecer a Michele Obama ativista. Na Filadélfia, compartilhou um conselho que dá a suas filhas quando são cercadas por insultos e críticas: “Quando outros se rebaixam, nós nos elevamos”. Acaba de presentar Clinton com as linhas que agora repete em quase todos os seus discursos. Mas também revelou a todo o país a coluna vertebral de seus oito anos na Casa Branca.