Nas linhas do artigo 128 do Código Penal, diploma que está prestes a fazer seu 76º aniversário, a interrupção voluntária da gravidez não é punível em um número extremamente restrito de cenários: o chamado aborto necessário ou terapêutico, quando há risco de vida da mãe, ou o aborto sentimental ou humanitário, quando a gravidez é resultante de estupro. Adicionalmente, temos a possibilidade de aborto nos casos em que o feto padece de anencefalia, decorrente dos avanços trazidos pela Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 54.
(O Estado de S. Paulo, 08/11/2016 – acesse no site de origem)
A resposta tradicional do Estado ao crime é punição e seguindo tal lógica para todas as hipóteses de aborto, além das mencionadas acima, temos prevista detenção de um a três anos (cf. art. 124 do Código Penal). É importante questionar se a penalização da mulher em decorrência de tal prática é a resposta estatal mais adequada.
A Organização Mundial da Saúde (“OMS”) estima que por ano, graças ao aborto inseguro, definido como a interrupção voluntária de uma gravidez indesejada por pessoas sem capacitação e/ou realizada em um ambiente sem atender as condições mínimas dos padrões, em torno de 47.000 mulheres morrem e milhares ficam temporária ou permanentemente incapacitadas.
Já em pesquisa de 2010 conduzida por Débora Diniz e Marcelo Medeiros, constatou-se que “o aborto é tão comum no Brasil que, ao completar quarenta anos, mais de uma em cada cinco mulheres já fez aborto”, sendo que quase metade delas foram internadas por complicações relacionadas ao procedimento, o que, nas palavras dos autores e acompanhando a lógica da própria OMS, “colocam o aborto como um problema de saúde pública no Brasil”.
Se tratado como uma questão de saúde pública o aborto passa a atrair os efeitos do art. 196 da Constituição Federal, que explicitamente dispõe que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”, devendo ser garantido mediante adoção de políticas sociais e econômicas.
Adotada tal perspectiva baseada na observação do que se passa na realidade de muitas brasileiras e de nossas diretrizes constitucionais, de uma forma isenta de questões religiosas ou morais, torna-se evidente que o Estado deve assumir suas responsabilidades frente à matéria, evitando a tentação de cair na “saída fácil” que simplifica um tema complexo à punição.
Guilherme Santiago N. B. Carvalho, aluno da Clínica de Litigância Estratégica da FGV Direito SP
A Clínica de Litigância Estratégica da FGV Direito SP está estudando e trabalhando na ação sobre ações de saúde e zika vírus no STF.
Entenda a ação: ADI 5581
Novamente o Supremo Tribunal Federal deve decidir sobre o direito de escolha sobre a manutenção de gravidez face crise de saúde pública. Por meio da ADI 5581, a Associação Nacional de Defensores Públicos denuncia os extensos males relacionados a gestações sob ação do vírus Zika – tanto no que se refere às críticas condições de fetos com microcefalia e outras mazelas consequentes, quanto ao fardo que mulheres desfavorecidas devem carregar ao cuidar de tais crianças sem devido apoio público ou privado. Em suma, pleiteia-se tanto a interpretação de que a situação de mães infectadas pelo vírus se encaixa na exceção do art. 128, I e II, do Código Penal, quanto alterações na Lei Federal nº 13.301/2016 para que se readeque o nível de auxílio a mães que optarem pelo parto, passando ainda por uma série de propostas suplementares e correlatas de política pública.
Desta forma, é importante notar que o que se pleiteia é reação estatal suficiente a uma epidemia classificada pela Organização Mundial de Saúde como Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional. O cerne da questão reside no altíssimo custo humano em forçar famílias a manterem uma gravidez com consequências das mais graves e com reduzidas chances de êxito. As únicas formas de contenção deste cenário calamitoso são (i) a transferência do custo ao Estado, por meio de políticas que de fato atinjam famílias mais desfavorecidas e com dotação orçamentária garantida, e (ii) a descriminalização da escolha entre manter ou não gravidez em caso de infecção pelo vírus, reconhecendo a variabilidade da proteção ao direito à vida ao longo da vida.
Klaus Rilke, aluno da Clínica de Litigância Estratégica da FGV Direito SP