O país é o que mais registrou casos de microcefalia entre os 57 atingidos pelo vírus desde o ano passado. Fim da emergência mundial não pode deixar questões como essa sem resposta
(UOL, 19/11/2016 – acesse no site de origem)
A Organização Mundial da Saúde (OMS) encerrou sexta-feira (18) o estado de emergência epidemiológica em razão do vírus zika, declarado em 1º de fevereiro deste ano, após a revelação do quadro devastador de malformações neurológicas em fetos e recém-nascidos encontrado no Brasil. Mas o fim do alerta deixa uma série de perguntas sem respostas. E uma sensação incômoda – e solitária – de que a epidemia é, essencialmente, uma tragédia brasileira.
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No Brasil, de acordo com o último boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, há 2.143 casos confirmados de microcefalia e alterações do sistema nervoso possivelmente causados pelo vírus zika, concentrados principalmente na região Nordeste. Outros 3.086 permanecem em investigação. É de longe o país – entre os outros 57 atingidos pelo vírus desde o ano passado – que mais registrou casos. Deles, 27 tiveram malformações. A Colômbia, com 57 casos confirmados, e os Estados Unidos, com 31, são o segundo e o terceiro país com mais notificações de malformações congênitas causadas pelo vírus. É uma diferença brutal, para a qual, por ora, só existem hipóteses.
Especula-se que leis mais flexíveis para interromper gestações na Colômbia e nos EUA tenham contribuído para que os números de casos registrados nos dois países sejam muito menores do que no Brasil. Aqui, o aborto é considerado crime e só pode ser feito mediante autorização judicial e em casos específicos, em que a vida da mãe esteja em risco, em que exista malformação incompatível com a vida ou quando a gravidez foi resultado de estupro. Existem outras hipóteses: a existência de algum outro fator, que conjuntamente à infecção por zika, aumente os riscos de danos neurológicos, ou a possibilidade de que muito mais gente no Brasil tenha sido infectada – o que aumenta os riscos de mais bebês nascerem com microcefalia. “Nós não sabemos se a epidemia no Brasil foi mais severa do que em outros lugares”, afirma o virologista Paolo Zanotto, professor do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo e um dos pesquisadores que lideram os esforços científicos no Brasil. “Nós ainda nem sabemos quantas pessoas no Brasil tiveram o vírus.” A hipótese – bastante plausível – de que o vírus zika se alastrou com mais força no Brasil é um indício das fragilidades estruturais do país, que ainda perde para o mosquito Aedes aegypti e sofre não só com o zika, mas com a dengue e a febre chikungunya.
É natural temer que o fim do alerta de emergência da OMS deixe sem resposta perguntas como as causas do tamanho da epidemia no Brasil. A entidade fez questão de deixar claro de que o significado é o contrário: um recado de que o zika veio para ficar e exige, portanto, preocupação e dedicação permanentes. A verdade é que a epidemia não causou no Hemisfério Norte o impacto que se esboçara a partir do quadro visto no Nordeste no fim do ano passado. E, aparentemente, no verão que se aproxima no Hemisfério Sul, não repetirá a tragédia do ano anterior. Segundo o boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, desde o pico de casos de microcefalia no Nordeste, em dezembro do ano passado, o número de notificações só cai. O Sudeste, a segunda região com mais casos no país, teve altos e baixos ao longo do ano, mas, desde setembro, apresenta uma redução acentuada. “Não estamos vendo o mesmo quadro do ano passado”, diz o infectologista Ricardo Diaz, da Universidade Federal de São Paulo. “É possível que muitas pessoas já tenham sido infectadas, o que cria uma espécie de imunidade de grupo.” Para o americano Peter Hotez, reitor fundador da Escola Nacional de Medicina Tropical da Faculdade Baylor de Medicina, nos Estados Unidos, a decisão da OMS pode ter sido precipitada. “Acredito que teria sido prudente esperar para ver o que vai acontecer no Hemisfério Sul nos próximos meses”, diz Hotez. “Ainda é muito cedo para prever o que acontecerá.”
A declaração de emergência foi fundamental para concentrar esforços mundiais em entender a dinâmica e as consequências do vírus, descoberto em 1947, mas que até então parecia inofensivo. Graças ao volume de pesquisas direcionadas pela OMS, hoje a ciência já pode cravar que a microcefalia e outras alterações do sistema nervoso são causadas pelo vírus – algo que apenas há um ano era uma suspeita. Já se sabe que as consequências do zika sobre os fetos em desenvolvimento não se restringem à malformação do cérebro eestão ligadas a deficiência visual e deformidades em articulações das mãos e dos pés. Vários grupos concentram-se em desenvolver uma vacina – a forma mais eficaz de proteger a população –, inclusive no Brasil. Dois já estão em fase avançada: em julho, a empresa farmacêutica americana Inovio, em parceria com o laboratório GeneOne Life Sciences, da Coreia do Sul, anunciaram ter começado os primeiros testes em humanos. Poucos dias depois, no começo de agosto, o Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (NIAID), do governo americano, divulgou também ter iniciado os testes clínicos em humanos.
Em seu comunicado de ontem, a OMS afirmou estudar os mecanismos de longo prazo que adotará para conter a epidemia – uma promessa de que os esforços não serão desmobilizados. No mesmo dia em que a OMS rebaixou a gravidade da epidemia, o Ministério da Saúde brasileiro anunciou a ampliação dos critérios diagnósticos de microcefalia para além do perímetro encefálico, como perda de audição e visão e comprometimento de membros. É uma forma de garantir que todas as crianças com possíveis alterações sejam acompanhadas até os 3 anos. É um bom sinal de que, para o governo brasileiro, o zika não deixou de ser um assunto urgente. Mas não pode ser o último.