Em entrevista ao ‘Nexo’, pesquisadora de Nova York fala sobre como houve e ainda há resistência em se aceitar milhares de casos de estupro de mulheres judias pelos nazistas. E o que isso diz sobre atrocidades sexuais posteriores
(Nexo, 25/11/2016 – acesse no site de origem)
Em 2006, Rochelle Saidel ministrava um workshop para acadêmicos renomados em Yad Vashem, principal memorial de Israel para vítimas do Holocausto. O evento era chamado “Beyond Anne Frank” (para além de Anne Frank) e tratava da situação das mulheres durante uma das maiores tragédias provocadas pelo homem, a tentativa de extermínio de judeus pelos nazistas durante a 2ª Guerra Mundial.
Em determinado momento, enquanto falava sobre as atrocidades passadas em Ravensbrück – campo de concentração só para mulheres localizado na Alemanha oriental -, ela mencionou o estupro. Um famoso estudioso do nazismo, então, levantou-se, apontou para a palestrante e esbravejou, contra todas as evidências, que nenhuma mulher havia sido violentada durante o Holocausto.
O episódio é contado por Saidel como a gota d’água que a levou a se debruçar sobre os estudos da violência contra a mulher durante o Holocausto. “Minha colega [que também ministrava o workshop] olhou para mim e eu olhei para ela e percebemos que era hora de escrever um livro sobre a questão. Sempre brincamos que deveríamos ter feito uma dedicatória àquele homem”, disse a pesquisadora nesta entrevista ao Nexo.
Para ela, os atos praticados pelos nazistas – e a negação deles – é precursor de diversas outras tragédias de violência sexual contra as mulheres nos últimos 30 anos.
Saidel veio ao Brasil em novembro para participar de um debate sobre violência sexual em situações de conflito, organizado pelo Instituto de Estudos Avançado da USP, por ocasião do Dia Internacional para Eliminação da Violência contra as Mulheres, que acontece nesta sexta (25).
A trajetória de Saidel
Se o episódio com o historiador em Jerusalém foi a gota d’água para a pesquisadora, seu interesse pela temática teve início anos antes.
Na década de 1980, Saidel estava na Alemanha e foi visitar Ravensbrück, o campo de concentração feminino, localizado a nove quilômetros de Berlim. Lá tomou conhecimento de uma série de crimes de gênero, para além das já conhecidas atrocidades nazistas – como estupros, abortos forçados, esterilização e prostituição.
A visita resultou no livro “As Judias do Campo de Concentração de Ravensbrück”, finalista do National Jewish Book Awards, que premia a literatura judaica.
Desde então, escreve e contribuiu para uma série de publicações sobre violência sexual durante o Holocausto e suas consequências.
Ela morou no Brasil na década de 1980 como correspondente e bolsista do Núcleo de Estudos sobre a Mulher da USP. Em 1997, fundou em Nova York o Remember the Women Institute, organização sem fins lucrativos que dá apoio a pesquisas e projetos culturais que integram as mulheres na história.
Atualmente, organiza a exposição “Harbendure of Other Horror” (algo como “o precursor de outros horrores”), que traça, por meio da arte, um paralelo entre a violência sexual no Holocausto e à praticada em genocídios posteriores como os de Darfur e Ruanda.
O incidente de Yad Vashem, com o acadêmico contrariado, virou tema de uma peça de teatro, “The Spoken and the Unspoken” (“o falado e o não falado”), apresentada duas vezes em Nova York.
Veja os principais trechos da entrevista do Nexo com Rochelle Saidel:
Por que você acha que as pessoas não aceitam o fato de que houve violência contra a mulher durante o Holocausto?
ROCHELLE SAIDEL Tenho alguns palpites. Primeiro de tudo, acho que muitas pessoas que trabalham com o Holocausto acreditam que precisam contar a história do genocídio dos seis milhões de judeus. Então eles têm medo que se você desviar disso, talvez diminua o ponto central. Eles não querem narrativas paralelas específicas. Mas essa não é exatamente paralela, afinal, metade das vítimas eram mulheres.
A outra questão é o fator da vergonha e da culpa envolvendo muitos desses historiadores. A maior parte deles é homem e acho que eles têm algum tipo de sentimento de culpa pelo fato de que as mulheres não foram protegidas. Mas repito, não tenho provas disso, é apenas uma hipótese.
A terceira questão é a de que, embora haja testemunhos, mulheres não querem falar sobre isso. Particularmente nos primeiros anos. Isso tornou a pesquisa muito difícil. Eu conversei com mulheres que disseram: “Minha melhor amiga era estuprada enquanto eu me escondia debaixo da cama para não me encontrarem”. Elas têm vergonha.
Por fim, embora atualmente testemunhos sejam aceitos por historiadores, havia um período em que era necessário ter documentos que provassem os fatos. E, bem, não existe um certificado de estupro. Há uma falta de documentação sobre nazistas estuprando mulheres judias.
Como a violência contra a mulher durante o holocausto serviu de precursora de outras tragédias décadas depois?
ROCHELLE SAIDEL Acho que há uma grande relação entre essas tragédias e é por isso que precisamos falar sobre elas. Não faz sentido fingir que não aconteceu, porque depois se seguiram outros genocídios em meio aos quais mulheres foram estupradas e isso é horrível. Aconteceu na Nigéria, em Darfur, no Congo, Guatemala, na antiga Iugoslávia, Eritréia, Ruanda.
Há uma relação e essa relação é a de que as mulheres estão duplamente em risco, são duplamente vulneráveis, porque elas estão ao lado de quem está sendo morto e são mulheres. É importante acentuar um fato, porém. Em muitos desses genocídios posteriores houve de certa forma uma política governamental de estupro. Vem com a conquista de um povo e de um território. Eles estupram as mulheres, elas têm filhos e há então a disputa sobre a qual etnia ele pertence. É o que aconteceu com os tutsis e hutus em Ruanda. Esse não foi o caso no Holocausto.
Mas houve ali outros fatores. Quando eu comecei minha pesquisa anos atrás, eu buscava por sinais de violência sexual como exceção, e quanto mais eu pesquisava me dava conta o quanto era a regra, como se repetiu nos genocídios posteriores. Havia, por exemplo, mulheres que foram tornadas escravas sexuais de nazistas em particular. O próprio processo de entrar num campo de concentração era humilhante sexualmente.
Como vê o contexto brasileiro de violência sexual?
ROCHELLE SAIDEL Estamos falando de tempos de conflito e genocídio, mas a questão é que isso acontece diariamente, nas ruas, nos campi universitários, no exército, na política. O tempo inteiro. Precisamos falar sobre isso.