Na vida pós-zika, trivialidades como escovar os dentes e beber um copo d’água se transformam em conquistas. São celebradas por pacientes adultos que contraíram encefalite e outras complicações neurológicas após a infecção. Agora, livres de encefalite, parte deles começa a apresentar síndromes neurológicas variadas. Alguns, jovens ainda, sofrem tremores como os característicos do mal de Parkinson. Outros, igualmente moços, demonstram perdas cognitivas típicas de demências. Perda de memória não é rara.
(Extra, 10/12/2016 – acesse no site de origem)
Estes pacientes se tornaram o centro das preocupações da equipe do médico e cientista Osvaldo Nascimento, professor titular de Neurologia e coordenador de pesquisa e pós-graduação em Neurologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Nascimento e seu grupo estão entre os pioneiros no Brasil na identificação da ligação entre o zika e a síndrome de Guillain-Barré e complicações como encefalites, encefalomielite disseminada aguda, meningoencefalite e encefalomielite. Agora, um ano após o atendimento dos primeiros casos, os mesmos médicos se deparam com outro desafio.
— Cerca de 40% dos pacientes que acompanhamos apresentaram síndromes neurológicas variadas depois de sofrer encefalomielite ou meningoencefalite. A infecção pelo vírus zika continua um grande mistério. Aprendemos muito em um ano, mas o desafio continua imenso. Não sabemos ainda que reações o vírus é capaz de produzir para afetar os pacientes dessa maneira — destaca Nascimento, um dos maiores especialistas do país em síndrome de Guillain-Barré e chefe do serviço de referência para a doença no Hospital Universitário Antônio Pedro, da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói.
‘ESTAMOS NO LIMITE’, DIZ MÉDICO
Em 2016, cerca de 50 pacientes com Guillain-Barré e encefalites associadas ao vírus zika foram atendidos no serviço de neurologia do hospital. Destes, 20 apresentaram sintomas inesperados.
— Nossa amostra ainda é pequena, mas estamos preocupados e intrigados. É perturbador ver um adulto jovem ter sintomas semelhantes, por exemplo, aos da doença de Parkinson. Mas não se trata de Parkinson, e, sim, de uma síndrome neurológica distinta. O vírus zika parece permanecer no sistema nervoso como um terrível desafio — afirma o neurocientista.
Um dos pacientes atendidos por Nascimento é um jovem que contraíra encefalite ligada à zika. Ele teve alta, mas depois apresentou tremores intensos. Hoje se alegra com o abrandamento dos sintomas. Os tremores melhoraram após um novo tratamento, e o rapaz pôde voltar a comer, beber e escovar os dentes sem precisar de ajuda. Antes, os sintomas o impediam de controlar movimentos simples. Com a chegada das chuvas e do verão, Nascimento teme que mais gente seja encaminhada ao serviço.
— Estamos no limite. Pacientes chegam em estado grave, e o tratamento é caro. Um ciclo de imunoglobulina custa cerca de R$ 30 mil para um paciente de 70 quilos. Há pessoas que precisam de dois, três ou até mais ciclos. Fora os custos com CTI. Hoje, temos 20 pacientes que ainda precisam de atenção. A situação já era ruim no verão passado. No próximo, poderá ser crítica — destaca o especialista.
A neurologista Camila Castelo Branco Pupe, que integra o grupo de médicos da UFF, observa que a burocracia ainda gera atrasos no atendimento, a despeito da gravidade dos casos de comprometimento neurológico da zika:
— Todo o sistema é travado e burocrático. Para requisitar um único medicamento se leva muito tempo. Isto custa vidas.
FALTA DE RECURSOS PARA PESQUISAS
Enquanto a burocracia atrasa tratamentos, a ciência tem avançado, a despeito dos cortes de recursos para pesquisa.
— A ciência do Rio fez muito e poderia ter realizado ainda mais se houvesse recursos. Mas não há. Este ano não recebemos um tostão do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) ou da Faperj (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro). Grande parte do conhecimento gerado sobre zika no Brasil veio do estado do Rio — frisa Nascimento.
Esse conhecimento produz resultados. O neurocientista cita descoberta de grupos do Rio sobre a cloroquina, droga contra a malária que teve bons resultados no combate do vírus zika em estudos.
— A cloroquina é promissora. Assim como a identificação de um indicador de gravidade da inflamação causada pelo vírus — diz.
Esse fator indicador é o anticorpo IgG3, mais elevado em pacientes de risco maior de apresentar complicações, supõem cientistas.
— Esperamos muitas coisas: que as pesquisas avancem, que drogas tenham mais sucesso, que tenhamos condições de atender a pacientes graves. E para tudo é preciso recursos para a ciência. Ela salvará vidas — observa Nascimento.
Ana Lucia Azevedo