A Declaração Universal de Igualdade de Género, desenvolvida por uma equipa liderada por Rui Nunes, presidente da Associação Portuguesa de Bioética, é apresentada hoje na UNESCO. A proposta venceu um concurso público internacional em que participaram 120 países. O documento entregue esta sexta-feira ficará sujeito a discussão pública durante de três meses. Como a Carta dos Direitos da Criança, e como a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, criada nos anos 40, este texto pretende servir de base e fundamentação à legislação que venha a ser criada em todos os países do mundo que proteja os direitos das mulheres e dos homens na mesma medida. O médico e professor catedrático explica-nos a importância da consagração da igualdade de género pela instituição internacional:
(Delas, 06/01/2017 – acesse o site de origem)
(Rui Nunes)
O que consta desta proposta e o que é que traz de novo em relação a outras declarações das Nações Unidas?
Trata-se de uma declaração, por um lado completamente original, porque é a primeira vez, a ser aprovada pela UNESCO, que há uma declaração específica sobre o tema da Igualdade de Género. Mas por outro lado, reconhece e enfatiza os valores e princípios éticos universais que estão consagradas na declaração universal dos Direitos Humanos. Ou seja, o que ela traz de novo é uma proposta de aplicação concreta e específica, no âmbito da igualdade de género, de valores como a justiça, a igualdade ou a equidade, cristalizando-os em domínios muitos concretos.
Que domínios são esses?
Por exemplo, no domínio da igualdade na educação. Num país já muito desenvolvido nessa matéria como é Portugal – ao contrário do que muitas vezes julgamos – , uma das propostas concretas desta declaração é que não haja nenhum tipo de desigualdade, em nenhum país do mundo, no acesso à educação e educação de qualidade, entre homem e mulher. Isto pode parecer quase que abstruso num país como Portugal, mas em muitos países do planeta ainda há divergências profundas no acesso à educação. Também enfatizamos na proposta o acesso à educação para a saúde, e à educação para a sexualidade e à educação para o planeamento familiar. Além da educação em geral, focamos aspetos que têm muito a ver com o posicionamento de homem e mulher, mas concretamente da mulher na sociedade moderna. Portanto, aspetos relacionados com a educação sexual, o planeamento familiar, a contraceção. Não impomos nenhum modelo de sociedade, abrimos o espírito para a necessidade de discutir abertamente estes temas. Outro eixo da proposta é a igualdade no acesso à saúde. Queremos reforçar que não só deve haver saúde de qualidade para todos os cidadãos, e que para além disso não deve haver nenhum tipo de desigualdade de sexo. E proteger, em matéria de saúde, a privacidade e integridade pessoal, combatendo práticas absolutamente inaceitáveis e discriminatórias como a mutilação genital feminina. Por outro lado, enfatizamos uma igualdade fundamental no acesso àquilo que são os bens da sociedade, nomeadamente no que diz respeito ao emprego e ao mundo laboral. Ou seja, focamos a necessidade de uma absoluta paridade no acesso à carreira e evolução profissional, na igualdade salarial, no acesso a lugares de topo na administração e mesmo a cargos em órgãos políticos. Trata-se de valores civilizacionais que a generalidade dos países já subscreveu e ratificou em convenções muito diferentes e que agora tomam um corpo diferente nesta Declaração Universal da Igualdade de Género, que a ser aprovada será um marco civilizacional muito importante, porque acabará por influenciar quer a legislação quer as práticas nos mais diferentes países e culturas da humanidade.
Como foi criar uma declaração com alcance universal, considerando todas essas diferenças e variações na evolução da própria concretização da igualdade de género?
Parece quase a quadratura do círculo, ma eu creio que é possível. Porque, em primeiro lugar, porque há valores e princípios universais que são inegociáveis e que estão bem patentes num conjunto alargado de declarações, da UNESCO, da ONU, ou de organizações internacionais muito diversas. Depois, porque creio que a cristalização desses valores em princípios práticos como a educação, saúde, planeamento familiar, mundo laboral, entre outros, tem uma geometria muito variada e uma aplicação diferente. Mas, como diz o povo, o caminho faz-se caminhando, nós não estamos à espera que de um momento para o outro, se por esta declaração ser aprovada na UNESCO, mudem as práticas culturais em todos os países do mundo, mas fica a semente. E mais cedo ou mais tarde, mais meses, anos ou décadas, os países da humanidade, de uma maneira ou de outra, e fruto também desta enorme comunicação global que hoje existe, acabará por produzir os seus frutos. Pode parecer um simples ideal conseguir que uma declaração destas e aplique nos diferentes países, mas é importante é, em primeiro lugar, haver um organismo com a dimensão ética e moral da UNESCO a debruçar-se sobre este tema e em segundo lugar que aprove uma declaração desta natureza que mais cedo ou mais tarde terá os seus efeitos. Já foi assim nos anos 40 com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e hoje ninguém a discute. O mais importante, por isso, é que haja este reconhecimento internacional.
E quais são as suas expectativas em relação à aprovação da declaração?
Estou confiante que vamos conseguir este duplo objetivo: aprovar a declaração e que ela mais cedo ou mais tarde venha a ser integrada, nas leis e nas práticas culturais, dos diversos países da humanidade. Nós gostávamos que ela fosse aprovada ainda durante este ano, até porque dá-se a coincidência feliz de haver uma diretora-geral que pôs na agenda, ao longo do seus mandatos, a questão da igualdade de género, e o atual secretário-geral, António Guterres, também pôs como marca da sua atuação a igualdade de género, portanto eu penso que há todas as condições para que seja aprovada em tempo útil. Pode parecer um ovo do Colombo mas há princípios e valores, pelos quais vale a pena lutar.