Trump mal saíra do baile anos 50, e as mulheres do século XXI já estavam nas ruas anunciando que vão enguiçar esse trator
(O Globo, 28/01/2017 – acesse no site de origem)
Resistir é preciso. Foi essa a mensagem da Marcha das Mulheres, uma inédita manifestação, simultânea em cinco continentes, contra a brutalidade com que o novo presidente dos Estados Unidos insiste em humilhá-las. E não só a elas.
Trump mal saíra do seu baile estilo anos 50, e as mulheres do século XXI já estavam nas ruas anunciando que vão enguiçar esse trator, movido a atraso e ódio, que ameaça esmagar seus direitos duramente conquistados. Madonna pegou o microfone e avisou: “Lutamos pela liberdade de sermos o que somos e de sermos iguais. Vamos manifestar juntos porque assim, a cada passo da travessia dessa escuridão, dessa era da tirania que é o governo Trump, não teremos medo”.
A Marcha das Mulheres que se espalhou por centenas de cidades americanas e do mundo foi uma irrupção do inesperado. Pelo seu imenso porte, uma surpresa, até mesmo para quem a convocou. E uma aula de democracia contemporânea, do modo de fazer política em tempos de internet e globalização, quando cada um decide em seu foro íntimo que luta quer lutar e joga no mundo sua convocatória. Uma advogada aposentada criou um perfil no Facebook convocando à marcha. Recebeu uma avalanche de adesões. A indignação individual floresceu em ação coletiva.
Vai ser um duro enfrentamento. Afinal, as mulheres são persistentes. Vêm quebrando um paradigma milenar que lhes negava o reconhecimento de sua plena humanidade. Conquistaram direitos de que não estão dispostas a abrir mão e forjaram uma ideia clara do seu lugar no mundo contemporâneo. Espalhadas em todos os continentes, estão em todas as casas, são mães de família, profissionais, cientistas, juízas, celebridades, anônimas. De todas as cores, idades e nacionalidades. São metade da humanidade. O homem mais poderoso da Terra, que exprime um genuíno desprezo por elas, não contava com um adversário dessa envergadura, saindo de cada porta. Seu arsenal nuclear, seus agentes da CIA podem pouco contra elas, que mostram a cara e dizem nas ruas sua indignação. As mulheres em movimento são como a floresta que assombrou Macbeth.
Elas sabem por que o conservadorismo as tem na mira. Um dos ingredientes principais desse veneno é o inconformismo com a perda da supremacia dos homens nas famílias e nos múltiplos espaços da sociedade trazida pela emancipação das mulheres. Sentindo o chão fugir debaixo dos pés, os Trumps da vida querem ressuscitar um mundo em agonia. São eles que se sentem mais atingidos e roubados em suas prerrogativas de autoridade, justamente esses que se habituaram a ter nelas o par perfeito, as bonecas para dançar “My way”, elas que não faziam caminho nenhum, que não iam a parte alguma.
Como conviver agora com mulheres que sabem o que querem e o que não querem, falam com voz própria, afirmam o direito sobre seu próprio corpo e desejo, que levam à prisão espancadores e estupradores? E ainda ousam se candidatar à Presidência dos Estados Unidos! Tudo isso vira de pernas para o ar o mundo em que esses homens estavam instalados, como um direito natural, imutável. A reação vem amadurecendo há muito tempo e se personificou agora, de forma caricatural no presidente recém-eleito dos Estados Unidos. Faz parte da caricatura acreditar que piadas obscenas, gestos agressivos, insultos e ameaças intimidariam e calariam as mulheres. Mas as ruas se coloriram no primeiro grande gesto de resistência a esses tempos de trevas. As mulheres foram as primeiras a protestar defendendo seus direitos e o de todos os que foram agredidos, em nome da civilização por quem se sentem responsáveis e que querem construir com direitos humanos, liberdades individuais e equilíbrio do planeta. Arrastaram multidões.
Fica um alerta: no Brasil também estamos em risco. Uma assustadora onda conservadora, inconformada com o avanço das liberdades, ameaça fazer a História retroceder. No apodrecido Congresso Nacional, um amálgama de fanatismo religioso, bancada da bala e parlamentares de extrema-direita aproveita o campo de ruínas em que se transformou o sistema político para tentar reverter os direitos conquistados nas ultimas décadas por mulheres e gays, para coibir o avanço da ciência e difundir nas escolas teorias criacionistas.
Não se minimize o perigo dessa aliança sombria. Humanistas que somos, temos o mau hábito de não acreditar em catástrofes. Poucos acreditaram no pesadelo Trump. Quem quer acordar no pesadelo que seria o triunfo dessa aliança? Antes que esse fantasma se materialize, é provável que tenhamos, nós também, que sair às ruas. Resistir é preciso.
Rosiska Darcy de Oliveira é escritora; [email protected]