“Eu apanhei muito durante a infância por conta do meu jeito de ser. Quando fiz 18 anos, assumi para os meus pais que era gay e eles me mandaram embora. Ainda insisti em ficar, mas em 2013 decidi vir embora para São Paulo”, conta a travesti Maria Leticia Ohana Costa, de 24 anos, a Manauara.
(BBC Brasil, 30/01/2017 – acesse no site de origem)
Exemplo do tipo de violência e intimidação que lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros muitas vezes sofrem por parte das suas próprias famílias, Manauara foi uma das cinco pessoas que conseguiram encontrar abrigo e acolhimento em uma iniciativa pioneira no bairro Bela Vista em São Paulo: a Casa 1, uma mistura de centro cultural com república LGBT.
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Inaugurado no dia 25 de janeiro, aniversário da cidade de São Paulo, e localizada na rua Condessa de São Joaquim, na zona central da capital, o espaço tem como objetivo acolher pessoas que, por algum tipo de conflito com a família, não têm onde morar.
Idealizada pelo jornalista e relações públicas Iran Giusti, de 27 anos, a Casa 1 pode ser considerada um refúgio num país onde, segundo o Grupo Gay da Bahia – ONG que coleta e divulga dados sobre o tema -, a cada 25 horas um LGBT é assassinado, o que dá ao Brasil o título de campeão mundial em números absolutos de violência contra minorias de gênero.
Segundo dados de ONGs internacionais, mais da metade dos homicídios de trans do mundo ocorrem no Brasil.
Em um relatório divulgado semana passada, a ONG destaca que aqui mata-se mais homossexuais do que nos 13 países do Oriente e África onde há pena de morte para gays e lésbicas. Luiz Mott, de 70 anos, antropólogo e fundador da ONG, destaca que São Paulo é o Estado campeão em assassinatos nos últimos dez anos.
“Infelizmente, apesar das algumas politicas públicas, isso não tem sido suficiente para reverter o quadro de tantas mortes”, afirma.
A ONG diz que os casos são subnotificados porque não há números oficiais de crime de ódio. “Eu coleto dados há 37 anos por meio da mídia e de relatos pessoais que me passam, mas isso é prova da incompetência dos órgãos de segurança pública e direitos humanos”, diz o antropólogo.
Os números têm crescido de forma preocupante. Foram 130 homicídios em 2000, com um salto para 260 em 2010 e para 343 em 2016.
A experiência do antropólogo se alinha com a de Giusti, que também considera que a falta de dados dificulta um retrato mais exato da situação das intimidações ou agressões sofridas pela comunidade. “É muito difícil saber o que está acontecendo exatamente – não temos classe social, nem idade, não há como traçar um perfil do LGBT expulso de casa”, conta Giusti.
A Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo afirmou estar implementando um sistema de informações para a coleta de dados sobre violações de direitos reportadas por usuários em dos Centros de Cidadania LGBT. “Hoje, nossos quatro centros contemplam cerca de 1.400 pessoas, com atendimento nas áreas jurídica, psicológica e de assistência social”, afirmou a pasta por meio de nota.
Entre os dados empíricos que Giusti coleta, ele diz ter notado um forte aumento nos casos de “exorcismo” organizados por familiares e de automutilação – quando a pessoa agride o próprio corpo.
Também há casos de isolamento social, como, por exemplo, quando a família impede acesso a internet e telefone. “(Isso) Acontece muito mais com as lésbicas”, conta ele. “A família as isola, ficam de casa para a escola da escola para casa”, conta.
Ele destaca a história de uma menina cuja família, após descobrir que ela era lésbica, a obrigava a comer somente o que sobrava após a refeição, e com talheres e pratos descartáveis. “Não vou dizer que isso me assustou, mas é inacreditável que ainda passamos por isso.”
Os primeiros moradores
Companheira de quarto de Manauara, a travesti Cindy Tobias da Silva, de 19 anos, chegou à casa com a roupa do corpo.
Cindy assumiu a transexualidade aos 14 anos e começou a se vestir de mulher. “Quando minha mãe descobriu que eu estava usando hormônios femininos, me disse que, se era para fazer isso, era melhor eu ir embora”, conta.
Ela saiu e voltou para casa diversas vezes, morou com uma tia e depois em uma casa na zona norte de São Paulo, onde fazia programas. A dificuldade de conseguir um emprego é um segundo obstáculo crucial. “Só por eu ser trans eu já sou ‘deletada'”, diz.
A falta de aceitação pela família também levou Marcel Borges, de 26 anos, a ocupar uma das camas da Casa 1. O estudante nasceu mulher, mas nunca se identificou como uma. Os pais não souberam como lidar com a transformação física do filho.
“É como se fosse um luto, a pessoa que eu era está deixando de existir para dar voz ao Marcel”, conta.
Borges buscou ajuda do Sistema Único de Saúde (SUS) e vai começar a tomar hormônios. “Quando raspei o cabelo, vi que não tinha mais jeito. Assumi o Marcel, também quero fazer a mastectomia (cirurgia de retirada dos seios).”
Ele relata os problemas que teve com a identidade social. “Já tive colegas de trabalho que se recusam a me chamar de ‘ele'”, conta.
Hoje, o jovem também é ativista da causa LGBT: “Nunca imaginei que fosse precisar desse tipo de ajuda, na real isso não deveria nem existir. As famílias deveriam aceitar as pessoas como elas são”, fala.
Vaquinha online
Foi com apoio de amigos e do namorado que Iran Giusti tornou a Casa 1 realidade, após uma campanha na internet que, em 42 dias, conseguiu arrecadar R$ 112 mil.
Toda a verba tem sido utilizada para pagar o aluguel e custos de alimentação dos moradores. “Eles vão cuidar da limpeza e da comida, mas vamos fornecer tudo e dar acesso total às atividades culturais”, fala.
A Casa 1 costumava ser um ponto de venda de drogas, mas agora chama atenção no bairro pelas cores na fachada e na calçada. O espaço tem dois andares com oito camas, cozinha e dois banheiros no segundo piso – e espaço para exposições e cursos no primeiro.
A ideia do projeto é unir os moradores à comunidade do bairro.
A iniciativa surgiu depois que Giusti ofereceu o sofá de seu apartamento para viajantes. “Um dos hóspedes que apareceu era um menino gay super-retraído. Para ele foi importante ver a gente confortável com a nossa sexualidade, conversamos muito com ele.”
O papo rendeu uma carta de agradecimento meses depois. “Com a história dele percebemos que a gente pressiona muito os órgãos públicos, mas esquecemos das pessoas, o importante é a convivência mesmo”, afirma.
Quando o orçamento melhorou, Giusti decidiu abrir a casa exclusivamente para LGBTs que necessitavam de um teto. “Eu coloquei uma foto bem tosca e ainda expliquei que não podia dar muita privacidade, mas eu garantia um teto, e a demanda foi enorme”, conta.
A ideia avançou sem qualquer apoio oficial – ele diz ter ouvido de grandes organizações que a iniciativa deveria estar ligada a políticas públicas.
“Se eles esperam há 30 anos por coisas como essa, eu não vou esperar. Estamos colocando a mão na massa e se tá com medo vai com medo mesmo, porque as pessoas enquanto isso estão sofrendo, estão apanhando, estão morrendo”, diz ele.
Gabriela Di Bella