Ontem, assisti a um filme que aqui no Brasil recebeu o nome de Mundos Opostos. Narra a história recente da Grécia, com destaque especial para a xenofobia e o desespero diante do desemprego supostamente gerado por uma circunstancial crise econômica. O clima de guerra civil, e de divisão entre os bons e maus cidadãos, é o cenário em que três histórias de amor são narradas. Enquanto muitos querem a expulsão dos estrangeiros e o sucesso econômico das empresas, a qualquer custo, outros lutam para sobreviver em um ambiente que lhes é hostil, teimando em apostar nos laços de afeto. Todos demasiadamente humanos. Todos perdidos na infinita solidão da vida contemporânea. Todos irremediavelmente dependentes do afeto do Outro, mas por vezes incapazes de reconhecer a alteridade.
(Justificando, 03/02/2017 – acesse no site de origem)
A narrativa inicia com uma tentativa de estupro, impedida pelo imigrante pobre para o qual os “cidadãos de bem” dedicam apenas seu desprezo. Uma bela sacada. A disseminação do discurso de eliminação da condição humana daqueles com os quais não nos identificamos, construindo muros reais ou simbólicos, tem na mulher um alvo histórico. A violência de gênero é certamente apenas um dos tantos exemplos possíveis, mas é emblemática.
Em 2016, o afastamento da Presidenta eleita Dilma Roussef foi determinado por votos de parlamentares que admitiam a inexistência de crime de responsabilidade, mas ainda assim participavam de uma espécie de catarse coletiva contra a ousadia da (falsa) esquerda que teimava em continuar no poder. Por trás da rivalidade ideológica, os ataques ferozes, em redes sociais, meios de comunicação e conversas de bar, que já vinham sendo reproduzidos e de certo modo estimulados por uma tolerância silenciosa, não eram dirigidos contra seus atos ou supostos erros na condução do país. Dilma estava sendo condenada por ser mulher, reprovada por não se enquadrar no ridículo estereótipo de “bela, recatada e do lar”. Na sessão de votação, um parlamentar, cujo nome nem merece ser reproduzido, exaltou a figura do homem que a torturou, dedicando a ele seu voto em favor do impeachment.
Por mais incrível que pareça, o autor dessa violência real e simbólica segue exercendo tranquilamente seu mister público. Aliás, algum tempo antes disso, ele já havia dito a uma colega parlamentar, que ela era feia e por isso não merecia ser estuprada. A afirmação de que algumas mulheres merecem violência física, ou de que devem ser “avaliadas”, como belas ou feias, que se revela na fala desse sujeito, é já em si um estupro moral, que nos agride a todas.
Recentemente, enfrentei ataques pessoais de desconhecidos que, a pretexto de discordar de uma decisão judicial, investiram com força e fúria contra a imperdoável ousadia de ser mulher. Uma ousadia cujo custo aumenta na proporção da carência econômica. Esta semana, em Porto Alegre, uma menina de 22 anos viu a filha morrer logo depois do nascimento, apesar de ser um bebê saudável. O parto, realizado pelo SUS, foi feito mais de oito horas após o rompimento da bolsa. A ausência de atendimento alterou definitivamente a vida dessas duas jovens mulheres.
O exemplo mais flagrante do que estou aqui enunciando também é recente. A ex-primeira dama Marisa Letícia enfrentou comentários misóginos durante o período em que acompanhou Lula em seus mandatos. Quando internada, passou imediatamente a ser alvo de violência. Sua condição de saúde, divulgada por uma médica em seus grupos de WhatsApp, suscitou comentários agressivos por parte de homens e mulheres que não hesitaram em lhe desejar o pior.
A morte, algo terrivelmente doloroso para todos aqueles que a conheceram e a amaram, e para todos os que reconhecem a dor da perda (para todos que são humanos, portanto), também foi alvo de comentários maldosos e atos de ódio contra Marisa Letícia. Assim como ocorreu em relação aos presos mortos nas chacinas recentes de presídios superlotados, e mesmo contra as mães, irmãs, esposas e filhas que, horrorizadas, buscavam notícias, reafirmou-se o pressuposto de que existem diferentes tipos de seres humanos: eles e nós. Enquanto compartilhamos simpatia e afeto, mesmo que falsos, dedicamos a eles (e sobretudo a elas) desprezo, ódio e violência.
O retorno (ou desvelamento) do ódio xenofóbico e o escancarar da violência de gênero tem direta imbricação com o quadro de desmanche social que estamos experimentando. Violência física contra trabalhadores, trabalhadoras e estudantes, projetos de lei propondo retrocessos que talvez sequer na década de 1990 teriam sido levados a sério, autorização de prisões sem condenação definitiva, campanha pela redução da maioridade penal, proibição de divulgação da lista de quem explora trabalho escravo, conduções coercitivas e delações superpremiadas, extermínio de presos e acidentes suspeitos formam um quadro de asfixia social.
Em um contexto de precariedade de direitos, nossos piores monstros despertam. Daí porque experiências de ódio que pensávamos haver superado, ou pelo menos relegado à condição de algo socialmente reprovável, em razão do sofrimento vivido em tempos recentes, ressurgem com uma força absurda.
Por isso, a despeito do que pensamos acerca do modelo social em que estamos inseridos, é preciso lutar contra o retrocesso. Nenhum direito a menos é a condição elementar para um convívio pacífico, para todos e todas, porque estamos, de algum modo, conectados por nossa necessidade de habitar o mesmo mundo, ainda que ele nos pareça o oposto do mundo do outro.
Valdete Souto Severo é Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e RENAPEDTS – Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social. Professora, Coordenadora e Diretora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS. Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região.