A lei de alienação parental, que deputado pretende tornar mais severa, abre brechas para que vítimas de abuso sexual sejam obrigadas a viver com pais suspeitos da agressão
(A Pública, 24/01/2017 – acesse a íntegra no site de origem)
Igor* tinha 4 anos quando fez a primeira queixa. Foi em 2013, num domingo à noite, depois de um fim de semana na casa do pai. Ele tinha tomado banho sozinho, tinha comido pizza e, antes de dormir, reclamou para a mãe que o “bumbum estava doendo muito”. Iolanda*, que estava separada havia dois anos – período em que mantivera uma relação amistosa com o ex-marido –, examinou o filho e constatou que ele estava realmente machucado.
Tentou perguntar alguma coisa, o quê ou quem tinha causado aquilo, mas viu que o menino se afligia demais e, com medo de piorar a situação, apenas colocou-o para dormir. Passou a noite em claro, encarando o teto do apartamento da zona sul do Rio, à procura de explicações que não fossem terríveis demais. Quando, na manhã seguinte, uma pediatra examinou Igor e disse que havia lesões indicativas de abuso, Iolanda, uma morena de expressivos olhos castanhos, à época com 26 anos, teve de sair da sala. “Não queria desabar na frente do meu filho”, disse.
No mesmo dia, o Instituto Médico-Legal (IML) do Rio de Janeiro confirmou os indícios de abuso. A polícia passou a investigar o caso, e a Justiça limitou o contato de Igor com a família paterna a visitas assistidas. Nesse meio-tempo, Iolanda confrontou o ex-marido e ele reagiu com nervosismo, disse que não havia abuso nenhum, que devia ser uma alergia. “Nessa hora percebi que ele sabia. Mas achava que estava protegendo o filho do primeiro casamento, que passava o fim de semana com eles”, contou Iolanda.
Algumas semanas depois, contudo, o menino falou sobre a causa dos machucados que levariam um mês para cicatrizar: “Você não está entendendo?”, disse à mãe. “Foi o papai que fez isso comigo.” Iolanda imediatamente entrou com um pedido de afastamento, novamente acatado pela Justiça fluminense.
Então as coisas começaram a mudar. Enquanto era investigado por estupro de vulnerável, o pai de Igor abriu um processo na vara da família. Alegava que a mãe estava promovendo uma campanha de difamação para afastá-lo da criança, e pedia a guarda do menino.
Enfurecida, Iolanda procurou aconselhamento de advogados e de conhecidos que trabalhassem no meio jurídico. De todos escutou o mesmo alerta: para tomar cuidado, que se fosse adiante com as acusações correria o risco de perder a guarda do filho. Ela respondia que não era possível, que havia provas concretas, que a Justiça não deixaria uma criança à mercê de um abusador, que estavam todos malucos. Não estavam.
O processo movido pelo pai suspeito de abuso lançava mão da Lei 12.318, de agosto de 2010. Conhecida como lei de alienação parental, ela foi criada com o objetivo de impedir que, em casos de divórcio, um cônjuge sabote a relação do outro com os filhos. Dificultar o contato da criança com o genitor, mudar de endereço sem justificativa, ou apresentar falsa denúncia são exemplos de alienação parental previstos na lei.
Acontece que provas nos casos de abuso sexual são extremamente difíceis de obter. O crime quase sempre ocorre entre quatro paredes, muitas vezes não há ferimentos, a janela para colher material genético do agressor no corpo da vítima é de 24 horas, os depoimentos das crianças são difíceis de obter e frequentemente carecem de objetividade. Fica fácil, para a defesa, argumentar que as acusações são falsas, e a ausência de provas de abuso se torna prova de alienação parental. Como uma das punições previstas é a inversão de guarda, as crianças, supostamente vítimas, muitas vezes acabam entregues aos suspeitos.
As mães, por sua vez, passam a ter o acesso aos filhos limitado, quando não totalmente proibido – penalidades que podem se tornar mais rígidas, uma vez que, desde fevereiro de 2016, tramita no Congresso o Projeto de Lei 4.488. De autoria do deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP), propõe que a alienação parental passe a ser considerada um crime. Caso seja aprovado, mães que denunciarem maridos ou ex-maridos sem conseguir provar poderão ser condenadas a penas de prisão, que devem variar de três meses a três anos.
Tomás Chiaverini