Quase toda cidade pequena – principalmente as de Minas – tem seu louco de estimação. Aquele que toda a cidade conhece, cuida e por quem zela como uma espécie de patrimônio. Ibiá, onde nasci, tinha o Zé Tem Dó; e foi com ele que aprendi sobre o valor simbólico de certos objetos. Eu devia ter uns quatro ou cinco anos. Minha mãe era costureira, e o Zé colecionava carretéis de linha. Portanto, suas visitas à minha casa eram constantes, porque minha mãe guardava todos os carretéis para ele e sempre oferecia algo mais, como um refresco, uma roupa, um prato de comida.
(The Intercept, 15/02/2017 – acesse no site de origem)
Pensando que o Zé estava distraído, certa vez tentei pegar em um destes carretéis. Ele se levantou com um pulo e, com mais dois, estava parado na minha frente, protegendo os valiosos bens que, para minha mãe, eram apenas sobras de trabalho. Saí eu correndo para o outro lado, assustada, com medo. Zé pegou suas coisas e foi embora, conversando com um dos carretéis que ele amarrava na ponta de uma linha e saia puxando. Era seu animal de estimação ou seu carrinho, algo que ia muito além do que eu conseguia ou conseguirei ver, a menos que um dia me torne um Zé e vá eu mesma virar folclore em uma cidade do interior. Mas ali, naquele episódio, aprendi uma coisa da qual pretendo falar aqui: o Zé não estava brincando com um carretel e nem nós estamos brincando com um turbante.
Somos signos criados pelos brancos para que nossa negritude pudesse, e ainda possa, ser mercantilizada.
Boa parte da população branca brasileira sabe de suas origens europeias e cultiva, com carinho e orgulho, o sobrenome italiano, o livro de receitas da bisavó portuguesa, a menorá que está há várias gerações na família. Quem tem condições vai, pelo menos uma vez na vida, visitar o lugar de onde saíram seus ancestrais e conhecer os parentes que ficaram por lá. E os descendentes dos africanos da diáspora? Quando chegaram por aqui, os traficantes de pessoas já tinham apagado os registros do lugar de onde haviam saído, redefinindo etnias com nomes genéricos como Mina (todos os embarcados na costa da Mina), feito-os dar voltas e voltas em torno da Árvore do Esquecimento (ritual que acreditavam zerar memórias e história) ou passarem pela Porta do Não Retorno, para que nunca mais sentissem vontade de voltar, separado-os em lotes que eram mais valiosos quanto mais diversificados, para que não se entendessem.
Ainda em terras africanas tinham sido submetidos ao batismo católico para que deixassem de ser pagãos e adquirissem alma por meio de uma religião “civilizatória”, ganhando um nome “cristão” que se juntava, em terras brasileiras, ao sobrenome da família que os adquiria. No Brasil, não podiam falar suas próprias línguas, manifestar suas crenças, serem donos dos próprios corpos e destinos. Para que algo fosse preservado, foram séculos de lutas, de vidas perdidas, de surras, torturas, “jeitinhos”, humilhações e enfrentamentos em nome dos milhares dos que aqui chegaram e dos que ficaram pelo caminho.
Como resultado disto, somos o que somos: seres sem um pertencimento definido, sem raízes facilmente traçáveis, que não são mais de lá e nunca conseguiram se firmar completamente por aqui. Temos, como diz a poeta, romancista, ensaísta e documentarista canadense Dionne Brand, em seu maravilhoso A Map to the Door of No Return, “o próprio pertencimento alojado em uma metáfora”. Viver na Diáspora Negra, segundo ela, é “viver como um ser fictício – uma criação dos impérios, mas também uma autocriação. É ser alguém vivendo dentro e fora de si mesmo. É entender-se como signo estabelecido por alguém e ainda assim ser incapaz de escapar dele (…).”
Somos signos criados pelos brancos para que nossa negritude pudesse, e ainda possa, ser mercantilizada. E não conseguimos escapar disso porque, de antemão, sem ao menos nos ouvir, vocês já parecem saber o que somos, o que queremos, o que sabemos. Assim mesmo: a negritude, a militância, as mulheres negras, esse povo – nunca seres individuais, mas sempre em lotes. E vivemos nesta metáfora que, a partir de agora, vou passar a chamar de turbante, mas poderia ser outro símbolo qualquer.
O turbante coletivo que habitamos foi constantemente racializado, desrespeitado, invadido.
Viver em um turbante é uma forma de pertencimento. É juntar-se a outro ser diaspórico que também vive em um turbante e, sem precisar dizer nada, saber que ele sabe que você sabe que aquele turbante sobre nossas cabeças custou e continua custando nossas vidas. Saber que a nossa precária habitação já foi considerada ilegal, imoral, abjeta. Para carregar este turbante sobre nossas cabeças, tivemos que escondê-lo, escamoteá-lo, disfarçá-lo, renegá-lo. Era abrigo, mas também símbolo de fé, de resistência, de união. O turbante coletivo que habitamos foi constantemente racializado, desrespeitado, invadido, dessacralizado, criminalizado. Onde estavam vocês quando tudo isto acontecia? Vocês que, agora, quando quase conseguimos restaurar a dignidade dos nossos turbantes, querem meter o pé na porta e ocupar o sofá da sala. Onde estão vocês quando a gente precisa de ajuda e de humanidade para preservar estes símbolos?
Lembro de ter visto um turbante usado por um homem sensível à causa das mulheres negras na Marcha das Mulheres, que aconteceu há pouco tempo em Washington, que perguntava: “Verei todas vocês, mulheres brancas legais, na próxima marcha #VidasNegrasImportam, certo?”. Vocês, mulheres brancas legais que querem se abrigar em nossos turbantes, vão estar conosco enquanto choramos as mortes dos nossos meninos negros e clamamos por justiça, certo? Vão usar turbante quando nossas mães e pais de santo são expulsos de comunidades ou entregues aos formigueiros, certo? Quando reclamamos da dor ao recebermos menos anestesia do que mulheres brancas durante os partos, certo? Quando denunciamos que sofremos mais violência, mais abuso e mais assédio do que vocês, certo? Quando reivindicamos equiparação salarial com vocês, certo? Vão reverberar nossas vozes quando reclamamos que somos preteridas pelos homens (brancos ou negros), certo? Vão entender e ter uma palavra de consolo quando sentimos culpa por deixarmos os próprios filhos em casa para cuidarmos dos seus, certo? Vão nos ouvir e nos defender quando tiver mais alguém querendo invadir nossos turbantes a força, na marra, no grito, certo? Porque aí, o turbante também já será de vocês. Vão ouvir, entender e falar junto quando tentamos explicar que nossas reivindicações, distorcidas, não têm nada a ver com pizza, calça jeans e feng shui, certo?
Quando vocês dizem “Vou usar e pronto, quero ver quem vai me impedir”, às vezes dá vontade de pegar vocês no colo, à moda das “mães pretas” que devem ter povoado as vidas de muitos de vocês ou de seus ancestrais, e dizer que isso não é comportamento de criança educada. E dizer que sim, algumas coisas são de vocês, porque foram da bisavó de vocês, da avó de vocês, da mãe de vocês e que, deste modo, a gente também poderia ter algumas coisas que são nossas, herança de família. Quer ver: Pizza! (“É comida italiana!”). Acarajé – do iorubá akara (bolo de feijão frito) + ijé (comida) – (É MEU! É do Brasil! É de todo mundo!). Hashu´al (É israelita!). Congado (É MEU! É do Brasil! É de todo mundo!). Quimono! (É japonês!). Ojá! (É MEU! É do Brasil! É de todo mundo!). Kung Fu (É chinesa!). Capoeira! – do tupi ko´pwera ou do umbundo kapwila – (É MEU! É do Brasil! É de todo mundo!). Abajur (Vem do francês!). Moleque, quiabo, berimbau, samba, cafuné, zumbi… (É MEU! É do Brasil! É de todo mundo!).