Na berlinda, o uso da palavra “mulata” no Carnaval de rua — uma reflexão sobre sua origem e ressignificações.
(HuffPost Brasil, 19/02/2017 – acesse no site de origem)
Elas dizem que se trata de uma forma de empatia com mulheres negras, e não de censura. Outras defendem que deixar de tocar a marchinha é enterrar a história de resistência de uma negra. E há quem reconheça a importância da música, mas rejeite o uso do termo e proponha sua substituição.
Na berlinda, o uso da palavra mulata na maior festa popular do País — uma reflexão sobre sua origem e ressignificações.
Elas são mulheres pretas — foliãs e ativistas — que a pedido do HuffPost Brasil opinaram sobre a marchinha Mulata Iê Iê Iê, composta por João Roberto Kelly há mais de 50 carnavais.
A música, inspirada em Vera Lúcia Couto, vencedora do concurso Miss Estado da Guanabara, em 1964, após desfilar sob ofensas racistas, vem sendo questionada por mulheres que se sentem ofendidas com o uso do termo mulata.
A vitória fez de Vera a primeira mulher negra a concorrer ao título de Miss Brasil — ela ficou em segundo lugar na competição nacional e foi a terceira no Miss Beleza Internacional, nos Estados Unidos.
“A passarela era alta e em formato de ferradura. Ao lado, ficavam as mesas de pista. Na hora em que eu passei desfilando em grupo, tinha uma senhora que corria entre as mesas e gritava: ‘Sai daí, sua crioula. Sai daí! O seu lugar é na cozinha'”, relembrou Vera Lúcia em entrevista ao site G1 em 2014.
Dia 8 de janeiro, abertura do Carnaval não oficial do Rio de Janeiro. O bloco Boi Tolo — o mais inclusivo da cidade — desfilava no centro da cidade. As marchinhas rolavam soltas quando trompetes e trombones anunciaram os primeiros acordes de Mulata Iê Iê Iê.
“Mulata bossa nova
Caiu no Hully Gully
E só dá ela
Iê iê iê iê iê iê iê iê
Na passarela”
Mas, desta vez, a adesão unânime à marchinha foi substituída por pedidos de mulheres para que ela fosse interrompida. O pleito foi ignorado até que as meninas tentaram, com seus próprios instrumentos, abafar a marchinha, provocando a reação de um grupo de músicos, que apesar dos protestos a executaram até o fim.
“Eu fiquei chocada quando eles vieram berrando em cima da gente porque atravessamos a música que nos ofendia”, relatou a designer e trombonista Rachel Lima.
Para a tradutora Ju Storino, percussionista da fanfarra Metais Pesados, o estopim envolveu boa dose de machismo — também experimentado por mulheres que tocam em blocos cariocas.
“A mulher ainda não tem a voz que tem de ter no Carnaval. A gente tem de ter voz sim, sermos ouvidas. Faltou empatia de ouvi-las naquele momento. Ninguém seria intransigente a ponto de dizer: ‘Não queremos que toque e a gente não vai discutir’. Elas sinalizaram que estava ofendendo e não estavam fechadas ao debate.”
O atrito furou a “bolha dos blocos de Carnaval do Rio” e o debate ganhou fôlego nas redes sociais e imprensa. A discussão, que também se estende a outras músicas tocadas no Carnaval consideradas machistas, racistas e homofóbicas, nasceu sobretudo da rejeição ao termo mulata.
As feministas negras Stephanie Ribeiro e Djamila Ribeiro retomaram a origem do termo no artigo “A Mulata Globeleza: Um Manifesto”, publicado no blog #AgoraÉQueSãoElas:
“A palavra de origem espanhola vem de ‘mula’ ou ‘mulo’: aquilo que é híbrido, originário do cruzamento entre espécies. Mulas são animais nascidos do cruzamento dos jumentos com éguas ou dos cavalos com jumentas. Em outra acepção, são resultado da cópula do animal considerado nobre (equus caballus) com o animal tido de segunda classe (equus africanus asinus). Sendo assim, trata-se de uma palavra pejorativa que indica mestiçagem, impureza. Mistura imprópria que não deveria existir. Empregado desde o período colonial, o termo era usado para designar negros de pele mais clara, frutos do estupro de escravas pelos senhores de engenho.”
A engenheira Simone Regina, percussionista da fanfarra Damas de Ferro, acrescenta que a palavra é empregada para se referir ao negro que “não é tão preto assim”, evidenciando tentativa de embranquecimento. O questionamento também joga luz sobre a objetificação da mulher negra.
“Ninguém pensa na mulata como engenheira. No imaginário coletivo, é uma mulher seminua, sensual, para o deleite dos homens, hiperssexualizada e vendida como bem de consumo para fora do Brasil”, avalia ela, que se recusa a tocar Mulata Iê Iê Iê no Carnaval de rua do Rio.
Para Ju Storino, também integrante do coletivo feminista Todas por Todas, nascido no Carnaval para combater violência não física contra mulheres, muitas não querem ser “mulatas iê iê iê”:
Eu não gosto de ser associada ao termo mulata, a um pedaço de carne, não gosto de ser associada a uma mula, de ter minhas qualidades medidas por um concurso de beleza. Mas, entendo integrantes do movimento negro ao dizerem que a Vera Lúcia é a primeira negra reconhecida [em uma marchinha]. Ju Storino, em entrevista ao Huffington Post Brasil
Já a advogada Bia Vidal defende que o racismo não reside no termo mulata, mas na intenção com que qualquer palavra é empregada. Para ela, o tom de Mulata Iê Iê Iê não é racista, mas sim de homenagem à miss negra que venceu o concurso e resistiu ao preconceito da plateia.
“[A marchinha] O Teu Cabelo Não Nega é racista. É o tom racista do termo mulata. Já Mulata Iê Iê Iê fala da beleza da Vera, de como ela desbancou as adversárias. É completamente diferente”, compara a trompetista, que não vê problema em tocar a marchinha.
Objetificação do corpo da mulher negra
A forma como se deu a homenagem à Vera Lúcia Couto na marchinha — no âmbito de um concurso de beleza — também é alvo de críticas. “É importante incluir a beleza negra como padrão estético, mas não entendo que seja válida a exaltação da mulher negra puramente por motivos estéticos. Essa música em nada ajuda a mulher negra. Ela deve ser valorizada em outros espaços”, defende Simone Regina, integrante do coletivo feminista Mulherame.
Para Bia Vidal, assim como o termo mulata pode estar dissociado de intenções racistas, a objetificação do corpo da mulher negra também ocorre de modo desvinculado dessa palavra. “Mesmo não sendo chamadas de mulatas, também somos objetificadas independentemente do termo. Sermos negras que acaba carregando isso [o lugar de objeto sexual].”
A trompetista sublinha que, à época da composição da marchinha, desconhecia-se o significado original do termo e, ante a recente rejeição à música, ela alerta para o risco de se enterrar a história de resistência de Vera Lúcia.
“Façamos o seguinte: tiremos o termo mulata da música, o que restará? Uma música que homenageia a mulher preta. Temos ciência do significado histórico do termo hoje, mas quando a música foi feita, não. A música não está elogiando o termo mulata, e sim a preta Vera. Excluir [a música] é excluir a História e o que ela representou para a época”, argumenta Bia, para quem o debate não tem tanta relevância entre as pautas do movimento negro.
A jornalista Eugenia Rodrigues conta que amigas militantes já reconhecem o termo como ofensivo. Ela própria, que integra o movimento feminista da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), diz ter tirado a palavra do seu vocabulário para evitar que alguém se sinta ofendido. Ela propõe que o termo seja substituído na música e defende a composição de novas marchinhas em sintonia com os avanços políticos dos tempos de hoje.
“A mulher negra é muito invisibilizada em tudo, até no movimento negro. Quando surge essa nesga de representividade, é complicado a gente banir de vez”, analisa.
A artista plástica Priscila Rezende também não vê teor racista na marchinha, mas a palavra mulata a incomoda e, por isso, ela também propõe um “meio termo” a fim de que a música não deixe de ser tocada e não ofenda mulheres negras.
“Ainda que [a marchinha] tenha sido feita com outra intenção, hoje é válido a gente ficar mantendo só porque foi feita como homenagem? Não acho que tenha de invalidar [a música]. Será que não dá pra tentar mudar a palavra [mulata], tentar encontrar uma palavra que se adapte ao ritmo da música e que não seja ofensiva às mulheres negras?”
Para questionar o estereótipo da mulher negra no Carnaval, Priscila apresentou no último dia 4, em Belo Horizonte, a performance “Vem… Pra ser infeliz” no Sesc Palladium. Ela escolheu a figura da Globeleza que, na opinião da artista plástica, é “uma personagem que busca de forma bem extrema a objetificação da mulher negra”.
No entanto, em vez de pinturas no corpo, Priscila escreveu as palavras “mulata tipo exportação” e usou uma máscara que remete à representação da escrava Anastácia conhecida atualmente. Símbolo de extrema violência, a chamada máscara de flandres permitia enxergar e respirar, mas sem poder se alimentar.
Durante a pesquisa para seu trabalho, a artista procurou baterias de escola de samba e verificou que as mulheres citadas como passistas eram “oferecidas como produto, como parte do pacote do serviço”. Ela ressalva, contudo, que não pretendia diminuir o trabalho das dançarinas, mas sim questionar “a ligação da mulher negra a esse lugar social da passista”.
É necessário falar, questionar e dialogar sobre o que nos aflige. Fomos mantidos calados e a nossa sociedade evita falar sobre nossas mazelas. Por eles, seríamos mantidos sempre no mesmo lugar. De subordinação e opressão. É necessário não nos submetermos mais.Priscila Rezende, em entrevista ao Huffington Post Brasil
Enquanto isso, no front do Carnaval do Rio, as mulheres que pautaram este debate pretendem seguir se posicionando sobre a questão e chegaram a cogitar fazer um apitaço, caso a música seja tocada novamente.
Na mira, além de Mulata Iê Iê Iê, está o hit funk Baile de Favela, questionado por, nas palavras delas, “legitimar um estupro”.
Discordâncias à parte, a trombonista Rachel Lima resume: “A gente não pode impedir o outro de fazer o que nos ofende, mas podemos gritar que está nos machucando”.