A Justiça tem buscado reduzir os casos de violência doméstica com abordagens voltadas aos homens enquadrados na Lei Maria da Penha, entre os quais estão homens com problemas de alcoolismo e drogas. Por isso, tribunais brasileiros se unem a entidades de apoio para encaminhar os agressores para tratamentos necessários.
(CNJ, 23/02/2017 – acesse no site de origem)
Um exemplo é a ação desenvolvida pelo Juizado de Violência Doméstica e Familiar de Fortaleza/CE que inclui integrantes dos Alcoólicos Anônimos (AA) nos encontros do grupo que trabalha com homens agressores. Segundo os magistrados que habitualmente trabalham com o tema, a relação entre consumo excessivo de álcool e violência doméstica é direta.
“Sou a única juíza dessa vara e posso afirmar que 90% dos casos de violência doméstica que passaram por aqui envolviam alcoolistas ou dependentes de droga ilícita”, diz Rosa Mendonça, titular do juizado. O termo alcoolista é proposto por alguns pesquisadores como uma alternativa menos estigmatizante que alcóolatra, mas se refere, igualmente, a pessoa dependente de álcool.
A vara cearense tem 20 mil processos em andamento. Lá, a parceria entre o Juizado e o AA começou em 2008 e desde então mais de 5 mil homens tiveram que frequentar, por um ano, as palestras de cunho pedagógico e humano, voltado para a conscientização.
Pinga – Em Belo Horizonte/MG, um dos envolvidos neste trabalho de conscientização é o Instituto Albam, que recebe homens encaminhados pela Justiça para desenvolver diversos conteúdos, como violência de gênero, paternidade, sexualidade, dependência, família, responsabilidades. A entidade pretende fazer um levantamento em 2017 para saber a proporção exata de agressores dependentes. Na avaliação de um dos psicólogos do time da ONG, Leonardo de Lima Leite, o resultado deverá confirmar essa relação.
“No processo de sensibilização, muitos revelam-se dependentes químicos. Estabelecemos com eles que nos dias do encontro não é permitido beber. Se estão sob claro efeito de álcool, pedimos que se retirem. A maioria deles conhece o AA e as redes locais de apoio. Não posso dizer que esse trabalho cure os dependentes, mas colocamos uma semente. No fim, a escolha é individual”, diz.
João Marcelo*, nome fictício de um homem cumprindo medidas protetivas, participa do grupo reflexivo do instituto. “Já frequentei o AA e fiquei 10 anos sem beber. Mas voltei. As recaídas fazem parte. Desde que entrei nesse grupo reflexivo para homens, venho me sentindo mais forte para não voltar, mas é difícil largar a pinga. Só sei que quando eu tomo, fico mais cheio de coragem e também descontrolado. Qualquer discussão boba às vezes acaba em briga. Não quero mais isso”, afirma.
CNJ – Os grupos reflexivos estão em conformidade com as recomendações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para o Judiciário e com a Lei Maria da Penha (11.340/2006), que recomenda ações para prevenir a violência doméstica. No entanto, apesar da lei já estar há 10 anos em vigor, apenas 10 estados brasileiros contam com esses serviços. E mesmo nos estados onde eles existem, o número é muito menor do que o necessário para atender os milhares de casos que chegam ao Judiciário.
“Os grupos de reabilitação ajudam na tomada de consciência desses homens, mas o número de grupos é pequeno e, para que a metodologia funcione, os grupos não podem ter muitos componentes. No ano passado, fizemos um trabalho com 10 homens agressores. Mas em um universo de 6 mil processos é muito pouco”, afirma a juíza Tatiane Moreira Lima, da Vara de Violência Doméstica contra a Mulher da Região Oeste de São Paulo. Segundo ela, o trabalho hoje é voluntário, ultrapassando o horário normal de expediente e ocorre com falta de estrutura física e de pessoal.
Para a coordenadora do Movimento Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar do CNJ, conselheira Daldice Santana, é fundamental fortalecer as ações de prevenção de violência para que o Brasil possa sair da 5ª posição na lista de país com a mais alta taxa de feminicídio no mundo, segundo o Mapa da Violência 2015. “As carências na rede de atendimento são muitas, mas os tribunais precisam buscar supri-las. A sociedade violenta é fruto de lares semelhantes. A criança ou o jovem que presenciam cenas de violência vai perpetuar as agressões, seja na escola ou em seus relacionamentos. É por isso que esse trabalho é tão importante e potencialmente transformador”, afirmou.
Experiências – Em Paramirim, município da grande Natal/RN, o grupo Reconstruindo Self trabalha há um ano com homens que já foram presos por descumprimento de penas e reincidentes em casos de violência doméstica. A execução do projeto está a cargo do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) e o juiz idealizador do projeto, Deyvis Marques, aponta o trabalho em rede como um diferencial. “Trabalhar com órgãos que possuem know-how frente a esses atendimentos sociais facilita o encaminhamento desses homens em casos de alcoolismo e drogadição”, explica.
Em Vitória/ES, no espaço Sala-Homem, da única Vara Exclusiva de Violência Doméstica da capital (onde tramitam mais de quatro mil processos com vítimas mulheres), a equipe psicossocial conversa com o agressor e, a depender da situação, pode encaminhá-lo para atendimento social ou de saúde da rede municipal. Segundo a assistente social Ingrid Mischiatte Taufner, que trabalha diretamente com os homens agressores, os alcóolatras raramente pedem ajuda. Por isso, ressalta, é tão importante o grupo reflexivo. “São seis encontros semanais e eles são obrigados a comparecer. A gente orienta, dialoga e vai quebrando as resistências. Não é fácil. Ali podemos conhecê-los um pouco melhor e encaminhá-los. É um caminho, mas não temos como garantir a mudança. Ela é gradativa e pessoal”, diz.
Regina Bandeira