Um adereço de origem oriental, símbolo da cultura e religiosidade de matrizes africanas, que já fez a cabeça de foliões em muitos Carnavais e frequentou passarelas de moda, reduziu um debate tido como fundador da sociedade brasileira a uma questão menor: branco pode ou não usar turbante?
(Folha de S.Paulo, 23/02/2017 – acesse no site de origem)
O turbante, ícone da etnicidade negra, suscitou discussões e dezenas de artigos e vídeos sobre apropriação cultural quando uma garota com leucemia postou nas redes sociais que havia sido constrangida por jovens negras a retirá-lo de sua cabeça por ser branca.
Apropriação cultural é quando elementos de uma determinada cultura são tomados como seus por uma outra cultura dominante, ou seja, quando existe uma relação assimétrica de poder.
O relato de Thauane Cordeiro, que lançou a hashtag #VaiTerTodosDeTurbanteSim, convulsionou as redes, opondo grupos à direita (“é racismo inverso”) e à esquerda (“é racismo”), brancos (“tenho o direito a usar o que eu quiser” ou “cultura não tem dono”) e negros (“é a banalização de um símbolo da nossa cultura”).
Para a filósofa e ativista Djamila Ribeiro, a questão passa longe do “pode ou não usar”. “O que incomoda o movimento negro é que nossas pautas são ridicularizadas ao mesmo tempo em que se quer fazer uso da nossa cultura e de seus símbolos.”
“A população negra, além de ter sido escravizada, teve sua cultura inferiorizada e criminalizada”, explica ela. “Esses mesmos elementos, quando interessantes ao mercado, foram embranquecidos, esvaziados e, então, transformados em produto comercial, sem que os povos que o produzem fiquem com sua fatia do bolo por serem etnias marginalizadas.”
A capoeira, que no século 19 era considerada crime de vadiagem, e o samba seriam outros exemplos de apropriação cultural, pois teriam conquistado as massas em especial quando protagonizados por brancos.
O mesmo poderia ser dito, defendem estudiosos, do rock e do jazz: ambos de origem negra, ganhariam o mundo na pele e no rebolado branco. Nos EUA, o fenômeno ganhou até termo próprio: “whitewashing”, algo como “lavagem branca”.
O hip-hop, os cabelos rastafári e o culto a orixás de religiões afro-brasileiras em versões brancas completariam essa lista.
“O que é de origem italiana ou judaica, por exemplo, é respeitado como tal. Por que não respeitar o que é símbolo da cultura negra?”, questiona Ribeiro.
O uso pela indústria da moda de crucifixos, símbolo do catolicismo, ou de quimonos, típicos da cultura japonesa, não geram a mesma discussão, segundo antropólogos ouvidos pela Folha, porque não carregam a carga de segregação pregressa dos negros no Brasil.
“Quando falamos em população negra, temos de pensar no que eles viveram ao longo da nossa história para entendermos a violência e virulência com que certas bandeiras são colocadas atualmente, haja visto o genocídio da juventude negra nas periferias urbanas”, avalia a historiadora Marina de Mello e Souza, autora de “África e Brasil Africano” (ed. Saraiva).
Para ela, nossa história escravista e a sistemática marginalização e inferiorização do negro e de sua cultura tornam essa uma bandeira política. “A gente lida muito mal com nossa herança africana.”
Cristian Salaini, antropólogo especialista em patrimônio cultural afro-brasileiro, afirma que os brasileiros têm uma relação ambígua com a cultura afro. “O uso de símbolos negros ocorre quando é conveniente e cool, e sem ônus. O sujeito não pratica o candomblé nem vive na periferia.”
Para a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz, autora de “O Espetáculo das Raças” (Companhia das Letras), “é importante politizar essa questão e mostrar como os costumes e os termos não são ingênuos, que tudo tem passado e história”.
Schwarcz cita “Um Rio Chamado Atlântico” (ed. Nova Fronteira), de Alberto da Costa e Silva, que aponta que o turbante viajou da África para as Américas e das Américas para a África, onde disputaria território com os cabelos trançados, num movimento de fluxo e refluxo.
“As populações brancas, por sua situação, tiveram mais condições de apropriar do que de serem apropriadas. É inegável que estamos todos nos copiando, mas a cultura não é um terreno separado da política”, afirma. “Toda essa questão de apropriação cultural é politicamente relevante contanto que não gere censura.”
Um jovem de cabelos rastafári loiros, que não quis se identificar para evitar represálias virtuais, admite que o debate o fez refletir sobre seu estilo, ao qual diz ter aderido como homenagem aos negros e manifestação de rebeldia.
“Não posso carregar as bandeiras do movimento negro e o peso de sua história porque uso este cabelo. Não seria de verdade”, admite. “Mas também não vou mudar meu estilo por causa disso.”
A cantora Mahmundi diz não gostar da “divisão” que tem acompanhado a discussão. “Você acaba focando uma coisa muito específica como o turbante, e afastando as pessoas. Temos que lutar por igualdade de outra forma.”
Para a ativista e editora de estilo Juliana Luna, que ministra workshops de turbante para mulheres negras e brancas, o caminho é informar e educar sobre a simbologia de certos elementos da cultura negra, gerando respeito. “O privilégio cega as pessoas e propaga o racismo e a ignorância. Mas podemos hackear isso em favor da nossa memória e cultura.”
Fernanda Mena