Hackathon organizado para agências de publicidade, em São Paulo, revela como o mercado criativo do País é majoritariamente masculino.
(HuffPost Brasil, 22/02/2017 – acesse no site de origem)
Publicidade e mulher. Sem pensar muito, o que vem à sua cabeça? A ~gostosa~ da cerveja foi a sua resposta?
Não precisa mentir. A reação não é só sua.
Se hoje 40% das mulheres são chefes de família e o poder de decisão de compra delas chega a 83% dos lares em setores como alimentação, vestuário, serviços e educação dos filhos, por que 65% não se sentem representadas quando se trata de mídia, publicidade e propaganda?
Os dados são da pesquisa da agência Heads, que concluiu que menos 20% dos comerciais contribuem para a equidade de gênero no País.
A resposta para a questão acima é mais fácil do que você imagina. A publicidade é pensada por homens e para homens.
Não há mulheres suficientes produzindo nas agências de publicidade e propaganda do Brasil, já que apenas 20% das equipes de criativos são compostas por elas, segundo levantamento do Meio & Mensagem.
Nesta semana, um evento de criação de campanhas com foco em mobile, organizado pela AOL Brasil em São Paulo, adicionou novos ingredientes a esse debate. O tema proposto para os criativos era equidade de gênero. Os profissionais deveriam desenvolver uma campanha para seus clientes, utilizando a tecnologia móvel, no intuito de trabalhar a problemática da desigualdade de gênero no mercado.
Porém, entre os 40 participantes do hackathon da AOL, apenas 4 dos profissionais enviados pelas agências de publicidade eram mulheres. Mais: a primeira mesa julgadora era composta apenas por profissionais homens do mercado.
Boa parte deles acabou refletindo sobre essa desigualdade no cenário criativo das maiores agências de São Paulo – quiçá do Brasil. Os insatisfeitos determinaram uma mudança na competição. Foi composta uma segunda mesa julgadora para a segunda fase do hackathon — apenas com mulheres.
A diretora de Vendas da AOL Brasil, Stella Guillaumon, esteve presente nas duas etapas da competição. Para ela, ter um júri totalmente masculino e outro feminino fez que os pontos destacados de cada projeto refletissem diferentes entendimentos do que é equidade de gênero.
Para nós, foi uma experiência de aprendizado. A gente enfrentou a dificuldade de encontrar mulheres no mercado para convidá-las para o evento. E aí que percebemos o quão difícil estava o cenário. Depois, na segunda etapa, ficou nítida a diferença entre o que foi levado em consideração na análise de cada campanha no primeiro e no segundo júri. Isso é só mais uma prova do quanto um ambiente diverso é importante para qualquer mercado.
Stella Guillaumon, diretora de vendas da AOL, em entrevista ao HuffPost Brasil
Seis profissionais que são referência em suas áreas analisaram o trabalho das duplas que foram selecionadas para concorrer a uma viagem ao evento SXSW, para o vencedor, e vídeo-game Xbox, para o segundo lugar.
Na etapa final, que aconteceu nesta quarta-feira (22), Isabella Pipitone, a única mulher entre os criativos finalistas, argumentou que o episódio do hackathon nada mais é do que a realidade do mercado em que ela “se acostumou a ser a única mulher nas competições”.
“A área de criação na publicidade assusta por ser majoritariamente masculina. E é por isso que a gente ainda tem de lidar com campanhas estereotipadas como ‘a cerveja das mulheres’. Mas quando você coloca mulheres na criação, você tem uma comunicação mais real e entregas mais poderosas”, conta.
Pipitone e seu colega, Felipe Drummond, ficaram em segundo lugar na competição. Para ele, trabalhar com sua dupla e outras mulheres “enriquece a visão de mundo”.
“O maior problema de não termos mulheres nas agências é que empobrece muito a comunicação com a sociedade, e quem mais perde nisso tudo é a própria publicidade. Não é que os homens não sejam sensíveis às causas femininas, mas simplesmente é diferente. Simplesmente não sou mulher. Então, a gente precisa sim de uma mulher que tenha suas próprias demandas e pensamentos. A comunicação brasileira está cada vez pior e um dos grandes problemas é a falta de diversidade”, diagnostica Drummond.
Como eles enxergam o problema
O diretor de arte Bruno Zampoli acredita que a mudança na mesa julgadora para receber profissionais femininas demonstra a preocupação do mercado em buscar visões mais diversas.
“Hoje, não basta perceber que está errado, você tem que correr para a transformação”, analisa. “A criação em si é masculina e isso é uma herança que a gente tem das outras décadas. Antes, a propaganda de cerveja fazia a piada machista porque quem ria dessas piadas machistas eram os próprios homens profissionais. Hoje em dia não faz parte do mindset esse tipo de coisa.”
João Paulo Testa é creative copywriter e admite que por muito tempo em sua carreira encarou com naturalidade o fato de trabalhar apenas com homens.
“Nós homens nem notamos muitas vezes. É algo tão natural que dentro de seus anseios, seus sonhos, você não para e questiona isso. Você quer construir uma carreira, ganhar um prêmio e não se preocupa se outras mulheres estão tendo essa mesma oportunidade.”
Porém, ele complementa que com o debate posto principalmente nas redes sociais, esse tipo de situação já não é vista com os mesmos olhos. Para Testa, hoje a situação da desigualdade de gênero incomoda e pavimenta caminho para mudanças. “O amadurecimento desse debate na sociedade está trazendo mudanças para todas as áreas”, avalia.
E é por isso que hoje em dia quem não aprende a escutar a voz delas acaba tendo que lidar com o desgaste de reputação. Para o diretor de arte Romulo Caballero, as agências atendem um público cada vez mais crítico.
“Se alguma campanha agride o público, ela vai receber o feedback nas redes sociais e vai ter que se transformar. É quase um organismo vivo que se autocontrola.”
O publicitário Lui Lima argumenta que um profissional de agência precisa estar acima de qualquer produto. Para ele, não importa qual o gênero do criativo; todos precisam fazer o melhor trabalho possível para que não haja nenhum dano à marca.
“Já recebemos prêmios por um job sobre maternidade que foi produzido por homens, por exemplo. A questão é você ter o olhar atento para a diversidade. Se você só fala com um público, você fica muito pasteurizado. A publicidade afeta a sociedade. Se a gente quer que ela mude, precisamos atentar para isso.”
Caballero também chama atenção para outro ponto: a rotina de trabalho. Ele afirma que para receber qualquer profissional oriundo de minorias, seja mulher, negro ou LGBT, as agências precisam ser mais “amistosas” e “tolerantes”.
“Com tanta oportunidade de atuação, nenhum criativo vai querer trabalhar em um ambiente que só tem cabeças fechadas. E aí a gente acaba perdendo esses talentos”, observa.
Agora é com elas
Não basta ter boa intenção. Tem que transformar.
Keka Morelle, diretora de arte, ao HuffPost Brasil
O recado acima é de Keka Morelle, diretora de arte e uma das integrantes da mesa que elegeu o vencedor do hackathon da AOL.
Para ela, a maior dificuldade hoje em dia é encontrar projetos e campanhas que resultem em mudanças efetivas na questão do gênero na publicidade, e que não sirvam de bom exemplo apenas em benefício da própria marca.
Edgard Vidal e Caio Fortes foram os escolhidos para o primeiro lugar. De acordo com a mesa, a ideia da dupla, além de trabalhar a equidade de gênero, teria potencial de impacto na forma de contratação de profissionais.
A dupla desenvolveu um modelo de inteligência cognitiva para computador que associa perfis de pessoas que buscam emprego a vagas oferecidas no mercado de trabalho.
Assim, são as competências do profissional que vão indicar quais candidatos têm mais afinidade com aquela oportunidade, independentemente de gênero, raça, orientação sexual etc.
Em um país onde uma mulher, quando contratada, chega a receber 25% a menos do que um homem desempenhando a mesma função, a ideia dos criativos é de muita serventia.
“A gente queria algo que propusesse uma solução, e não apenas algo que as pessoas achassem bonito, mas não mudasse nada”, explica Vidal.
A diretora criativa Ana Castelo Branco acredita que a composição majoritariamente masculina do mercado implica uma visão muito “paternalista” sobre equidade de gênero. Apesar de a discussão tomar as redes, as mesas de bares e até mesmo as agências, as seis profissionais que participaram do hackathon e têm que lidar diariamente com a dificuldade de ser mulher neste mercado acreditam que ainda é preciso muito mais.
“É um tema que vai além do número de homens e mulheres existentes em cada equipe. Muito do que existe de machismo hoje na sociedade foi formatado pela própria publicidade, seja nos estereótipos ou nos padrões. Já passou da hora de rever isso”, explica a executiva Laura Florence, que integrou o segundo júri.
Colocar mais mulheres na publicidade não é só mudar a representatividade, mas é mudar uma cultura. Acho que outras colegas já devem ter passado por isso, mas quando a gente está no dia a dia, nota que tem algo errado em uma campanha e faz uma crítica, é comum ouvir ‘mas aí, agora perdeu a graça’.
Laura Florence, VP de Criação, ao HuffPost Brasil
O pensamento de Florence é compartilhado por outras tantas mulheres em cargos de liderança. Para as publicitárias, foi preciso se “masculinizar” muitas vezes para sobreviver no mercado. “Durante muito tempo como redatora eu tive que ouvir ‘Faça títulos como homens'”, relata a executiva.
Ao ver as mulheres como referência na mesa julgadora, Isabella Pipitone não tem dúvidas de que é preciso ser feito um esforço para se contratarem novas profissionais e abrir espaço no mercado:
“Quando é aberta uma vaga, provavelmente as primeiras cem pastas que você recebe são de homens. Porque é realmente um clube deles, e o fluxo determina que a informação chegue logo a esses homens. São os próprios colegas de agência que repassam para outros amigos e por aí vai. É um ciclo vicioso que você tem que quebrar. Por mais que você receba cem pastas de homens, você tem que ter a noção de que existem cem outras mulheres tão competentes quanto. Simplesmente porque a informação não chegou até elas, elas não estão lá. Tem que haver um esforço.”
Outra questão levantada por elas é que não basta o acesso de mulheres ao mercado de publicidade, ou em qualquer outro, mas é preciso criar condições para que elas permaneçam.
“Tive que fazer 18 reuniões certa vez para conseguir viabilizar um espaço de amamentação em uma das empresas. Ou também ouvir do RH durante uma das entrevistas: ‘Mas você viu que ela acabou de casar?’, como se isso fosse um problema, por ela ter a possibilidade de engravidar em breve. Não é apenas ter mulheres na empresa, mas criar condições para que elas tenham a melhor performance possível. Porque sim, elas podem tudo”, conclui Laura Florence.
Ana Beatriz Rosa