Jurema Werneck é filha de um alfaiate e uma costureira, e nasceu no Morro dos Cabritos, em Copacabana
Sua raiz africana transcende seu corpo franzino. Está presente nas roupas, bolsas, colares e pulseiras que ela adora vestir. As estampas e as cores são sempre vibrantes. Jurema Werneck faz questão de celebrar sua negritude. Em seus discursos, é eloquente ao falar e, no olhar, carrega certa dose de compaixão. Mulher, negra e lésbica, essa carioca, nascida no Morro dos Cabritos, em Copacabana, venceu todos os sufocos da vida e agora, aos 56 anos, se prepara para um novo desafio: comandar o escritório brasileiro de uma das maiores e mais importantes organizações de direitos humanos do mundo, a Anistia Internacional.
(O Globo, 19/03/2017 – acesse no site de origem)
Filha de uma costureira e de um alfaiate, Jurema conta que seus pais “viveram e morreram” para que ela, sua irmã adotiva e seus dois irmãos se dedicassem aos estudos. Apesar das dificuldades financeiras, eles nunca precisaram trabalhar na infância ou na adolescência, pois seus pais se desdobravam para colocar comida dentro de casa. Juntos, varavam a noite costurando roupas. A ativista lembra que, de manhã, mesmo sem ter dormido direito, seu pai já voltava ao batente como servente e, anos depois, como porteiro, no Hospital da Força Aérea do Galeão, na Ilha do Governador, para onde se mudaram quando tinha 6 anos. Aos 14, perdeu a mãe, vítima de complicações de um acidente vascular cerebral.
— Meus pais trabalhavam sem dormir. Às vezes, 72 horas direto. Desde criança, tinham vontade de ter continuado os estudos, mas não puderam. Então, faziam o que fosse necessário para que a gente estudasse. Não dormiam, se alimentavam mal, trabalhavam demais. E isso não termina bem — comenta, sentada em sua sala no casarão azul de dois andares da Anistia, ao lado da Praça São Salvador.
O preconceito e o curso de medicina
Na escola, por ter déficit de atenção, Jurema tinha dificuldade em prestar atenção no conteúdo transmitido em sala de aula. Diz, no entanto, que foi salva por uma caneta de três cores que a ajudava a organizar os pensamentos. Quando fez vestibular, passou para medicina na Universidade Federal Fluminense, um dos cursos mais concorridos do país. Cruzava, de ônibus, a Ponte Rio-Niterói, debruçada nos livros e com o dinheiro contado (“Cada moedinha valia ouro”, ela conta). Era a única negra de sua turma, alvo frequente do racismo.
— Meu pai sempre dizia que não existia curso concorrido. Quando você faz a prova, é só você e a prova. Então, realmente não pensava em concorrência. Não foi uma opção. Aconteceu. Mas detestei o curso. Imagina uma escola burguesa em que as pessoas diziam que negro fede no corredor — conta Jurema, revoltada. — Depois, durante minha prática médica, muitas vezes, as pessoas entravam no consultório procurando pela médica, sendo que naquele ambulatório só tinha eu, sentada no lugar onde médico senta.
Seu primeiro emprego foi na Secretaria municipal de Assistência Social, onde trabalhou, depois de formada, durante cinco anos, com medicina preventiva nas favelas cariocas. Em seguida, atuou como pesquisadora no Centro de Articulação de Populações Marginalizadas. Em 1992, ajudou a fundar a ONG Criola, voltada para a promoção dos direitos das mulheres negras. Concluiu, anos depois, seu mestrado (2000) e seu doutorado (2007) na UFRJ.
Ela deixou a ONG Criola para assumir a Anistia Internacional no fim do ano passado. Na posição de diretora-executiva, Jurema tem passado por uma maratona de treinamentos e viajado bastante. No dia 27 de janeiro, embarcou para Londres, onde conheceu a matriz da organização. Visitou, em seguida, a sede em Bangalore, na Índia. Apesar de gostar de samba, usou a semana do carnaval para descansar em sua casa em Maricá, onde mora com a esposa. Na semana passada, visitou a outra sede, no México.
Primeiro diretor-executivo da Anistia no Brasil, Atila Roque ajudou a montar, em 2012, o escritório no Rio. No ano passado, deixou o cargo para assumir a direção da Fundação Ford no Brasil. Para ele, Jurema é “a pessoa certa para levar a Anistia a novos patamares de impacto na luta por direitos humanos no Brasil”.
— Jurema combina rigor acadêmico, integridade política e leveza nas relações pessoais que a tornam uma pessoa essencial, principalmente num momento de tanta intolerância e fundamentalismo. É, para mim, uma referência e uma inspiração — disse Atila.
No início do mês, ao lançar o relatório da Anistia, Jurema reforçou seu compromisso com a defesa dos direitos humanos no Brasil, com um olhar especial:
— Uma mulher negra no contexto de violações de direitos humanos no Brasil tem que enfrentar todo dia, a necessidade de confrontar o peso e a força desses inimigos chamados racismo, sexismo, pobreza, exclusão, desvalorização. Sou basicamente uma ativista, da vida toda. Mas sou uma ativista da vida boa, da vida bela, da vida digna. A gente luta e dá o sangue para que esse mundo seja melhor.
Por Guilherme Ramalho