Conversamos com Hari Nef, modelo e atriz transgênero, sobre a necessidade de derrubar estereótipos e seus projetos no mundo do cinema e da moda
Guarda em suas lembranças que, por um longo tempo, ninguém queria contratá-la. “Meu agente me consolava dizendo que uma pessoa acabaria acreditando em mim. E que, depois, todo mundo correria para fazer o mesmo”, afirma Hari Nef, enrolada em um sofá em um hotel de Berlim. E assim aconteceu. Depois de ser ignorada durante anos por uma indústria que não sabia o que fazer com ela, começaram a chover contratos.
(El País, 21/03/2017 – acesse no site de origem)
No mesmo fim de semana, recebeu uma ligação de Jill Solloway, a criadora da série Transparent, que lhe propôs interpretar um antepassado transexual da família protagonista. E também do responsável da agência de modelos IMG, que representa tops como Kate Moss e Gigi Hadid, para anunciar que queria contratá-la. Desde então, esta norte-americana de 24 anos, graduada em interpretação pela Universidade Columbia, já atuou em um vídeo para a banda The Drums, foi tema de um perfil de várias páginas na revista The New Yorker, a bíblia da intelectualidade da costa leste dos EUA, e acaba de se tornar a nova garota-propaganda da Gucci. Será um sinal deste momento histórico que se supõe estar sendo vivido pelo movimento trans? Nef nega categoricamente: “Os que vivem este momento histórico continuam sendo os homens brancos”.
P. Você é a primeira modelo transgênero contratada pela agência IMG, primeira imagem trans de Gucci e a primeira porta-voz trans da L’Oréal. Qual é a sensação de ser a primeira em tudo?
R. Não entendo esta obsessão. No fundo, quando você faz parte de uma comunidade ignorada, brutalizada e denegrida por tanto tempo, não é difícil ser a primeira a conquistar todas essas coisas. Entendo que isso gere atenção e manchetes, mas a obsessão com minha identidade e meu corpo me parece, em muitos casos, simples voyeurismo. Valorizo o que tenho conseguido, mas, para citar Maya Angelou, me recuso a ser reduzida a isso. Preferiria ter todas essas coisas discretamente, sem que todos apontassem o dedo para mim o tempo todo. Entendo que é uma honra, mas acho desconfortável.
P. Não acredita que essa insistência seja uma demonstração de que as coisas estão mudando?
Não, não acho que demonstre uma mudança. Veja o que está acontecendo no meu país. Você realmente acha que aparecer em uma campanha da L’Oreal ou usar um vestido Gucci vai salvar os Estados Unidos daquilo que a Administração Trump planeja fazer? Claro, pode ser que isso consiga ajudar alguém. Talvez alguém semelhante a mim se sinta melhor e comece a se amar um pouco mais. Mas me parece pouco realista projetar expectativas tão progressistas no simples fato de que trabalho na moda e em Hollywood. Participo dessas indústrias porque gosto do trabalho que me propõem, mas não esqueço o quanto elas são racistas, sexistas e transfóbicas.
P. Neste contexto, você se considera uma ativista?
R. Não sou uma ativista. Sou apenas uma atriz. Luto por obrigação, não por escolha. Não vim a este planeta para salvar minha comunidade. Não quero fazê-lo, mas não tenho escolha. Sinto que tenho uma responsabilidade, por ser alguém que foi à faculdade, que sabe falar diante do público e que se tornou uma figura pública. Mas não gosto nem me inspira. Por outro lado, é uma fonte de muita dor. Na verdade, só quero ser uma pessoa. Quero trabalhar. Quero amar e fazer amigos, ir às compras, passar tempo com minha irmã e ligar para minha mãe para lhe contar como foi meu dia. Aceitei isso, mas gostaria que minha vida fosse diferente.
P. Parece insinuar com suas palavras que o movimento transgênero não vive nenhum momento histórico. Totalmente o oposto do que é repetido há anos.
R. Talvez seja… ou talvez não. O que digo é que temos estado dentro e fora dos holofotes há algum tempo. Na década de cinquenta, foi Christine Jorgensen [a primeira pessoa que afirmou ter feito uma cirurgia de mudança de sexo]. Na década de sessenta, Candy Darling trabalhou com Tennessee Williams. Nos anos setenta, Renée Richards participou do U.S. Open de tênis. Nos anos noventa, tivemos o documentário Paris is Burning e o filme Traídos pelo Desejo foi um sucesso. E, nos tempos antigos, o imperador Heliogábalo prometeu dar de presente metade do Império Romano ao médico que conseguisse mudar seu sexo…
P. Nada mudou nos últimos 20 séculos?
R. Não, não há novidade: agora foi estabelecida uma aliança entre este movimento e o neoliberalismo. Isso é bom e ruim ao mesmo tempo. Por um lado, isso nos tem proporcionado uma plataforma midiática. Por outro, generaliza uma imagem de uma comunidade que parece impossível generalizar. Os transgêneros não compartilham da mesma cultura. Além disso, o gênero se define culturalmente, de modo que ser trans nos Estados Unidos, nas Filipinas ou na África não é a mesma coisa. Falar da “comunidade trans” é, basicamente, como falar da comunidade dos ruivos com sardas.
P. O trans virou moda, mas a realidade ainda tem um outro lado mais prosaico do que se vê no cinema, na televisão e na moda…
R. É claro que sim.
P. Por exemplo, na mesma semana em que a revista Time dedicou sua capa à atriz Laverne Cox, de Orange Is The New Black, um grupo de mulheres transgênero foi brutalmente agredido em Atlanta.
R. É interessante, porque o aumento da visibilidade da comunidade trans é diretamente proporcional ao aumento da violência contra os seus membros. Ainda mais se são mulheres. E ainda mais se essas mulheres são negras. Não podemos esquecer nomes como Monica Loera ou Gwen Araujo, que morreram depois de serem agredidas. Embora eu tente não pensar muito sobre isso, porque acho muito doloroso.
P. Obama protegeu as crianças transgênero e permitiu operações de mudança de sexo financiadas pelo Governo. Você teme um retrocesso durante o mandato de Donald Trump?
R. Trump prometeu, desonestamente, preservar alguns decretos que protegem a comunidade LGBT. Na verdade, sua administração está promovendo leis e decretos para favorecer a liberdade religiosa de trabalhadores no setor público. Isso significa que, se a nova regulamentação for concretizada, um funcionário público poderá discriminar quem quiser. Certamente as pessoas LGBT, já que o estilo de vida delas e suas identidades não se ajustam a certos valores religiosos. Estamos diante de um perigo real. A verdade é que, antes das eleições, disse a mim mesma que não falaria mais sobre estas questões. Mas os tempos mudaram desde então…
P. Parece que seu país dá um passo para frente e dois ou três para trás.
R. Sim, mas isso, para mim, é a definição de progresso, se é que existe essa noção. Quando ouço meus amigos afro-americanos, percebo que seus tataravós lutaram, que seus avós continuaram lutando e que seus pais insistiram ainda mais nesta luta. E eles mesmos continuam lutando. O que isso diz sobre nós? Seja o que for, o que estamos fazendo não está funcionando.
P. Qual caminho tomar, então?
R. Não sei. Creio que precisamos de mais pessoas dispostas a nos ajudar, de gente que não se sinta diretamente s atingida por esses problemas. Eu não deveria estar lutando tanto. Quem deveria fazer isso é gente com muito mais poder. É irritante quando me dizem: “O que eu posso fazer pela sua luta?” Diga-me o que posso fazer!”. Dá vontade de responder que o meu conhecimento sobre essas questões não se deu num passe de mágica. Li muitos livros, interessei-me pela vida dos outros, fiz perguntas a eles e escutei o que diziam. Minha resposta seria: estude! Leia Problemas de gênero, de Judith Butler! Informe-se a respeito do que acontece à sua volta! Fale com os transgêneros que existem na sua vida! Marque um encontro com um deles! Receba-os na sua vida e no seu coração! Não fique de lado perguntando: “O que eu posso fazer por você?”. Até porque a lista de coisas seria longa demais…
P. Na série Transparent, você interpretava uma transgênero berlinense dos tempos de Weimar. Diz-se que foi naquele período que se inventou a identidade sexual moderna. Houve um momento de tolerância para com o gênero não binário que desapareceu ao longo do século XX…
R. O que eu aprendi ao me preparar para esse papel foi que estivemos muito perto de atingir isso. Em alguns lugares da Europa, os transgêneros foram aceitos, entendidos e integrados. Até mesmo as instituições médicas se interessaram neles. Esse personagem me levou a me perguntar em que pé estaríamos hoje se não tivesse acontecido a Segunda Guerra Mundial. É uma pergunta que me faço, não só como mulher transgênero, mas também como judia…
P. Uma das mudanças que observamos no cinema, na televisão e na moda é que os transgêneros já não são seres monstruosos como em outros tempos. Eles hoje possuem corpos sexualizados e atraentes…
R. É verdade. Somos uma das categorias de pornografia com maior quantidade de seguidores. Certamente alguns homens presentes nesta sala já consumiram pelo menos uma vez algum pornô trans…
P. Isso é bom ou é ruim?
R. É bom saber que o corpo transgênero não representa uma coisa indesejável. Mas também é ruim, porque a representação da minha comunidade pela pornografia tende a ser de caráter explorador. E é fabricada para ser consumida pelo olhar masculino. A pornografia é o principal canal por intermédio do qual os homens heterossexuais descobrem o corpo de uma mulher transgênero. Ou uma shemale, para usar uma dessas palavras nojentas que o pornô reserva para nós. Não devemos nos enganar: há uma porcentagem muito baixa de homens que nos acham belas e atraentes, que ousam pedir para sair conosco ou que cuidam de nós ou nos amam com a mesma dignidade com que tratariam uma mulher cisgênero.
P. Qual é a sua experiência disso?
R. Conheço poucas mulheres trans com relacionamentos longos, muito menos casadas e menos ainda que não tenham conhecido uma relação violenta. É difícil topar com um homem que se sinta bem com sua própria masculinidade a ponto de aceitar uma mulher que é diferente… Mesmo que, na verdade, ela não seja, de modo algum, diferente. Sei de muita coisa. Se deixasse vazar minhas mensagens privadas, ganharia milhares de dólares com o TMZ [site sensacionalista de notícias sobre celebridades]. Não vou falar mais nada… Mas, escute, você não vai perguntar nada sobre a minha carreira de atriz?
P. Sim, chegamos a ela. Sei que você logo começará a filmar com Suki Waterhouse…
R. Isso mesmo. Estou muito emocionada. É o meu primeiro filme com um personagem protagonista. Ele se chama Assassination Nation e é dirigido por Sam Levinson, filho do diretor Barry Levinson. É a história de quatro moças em um vilarejo norte-americano ameaçadas por um hacker anônimo que publica dados pessoais, mensagens, correios eletrônicos e fotos privadas delas. O filme reconstrói e atualiza o julgamento de As Bruxas de Salem, em que os habitantes desse vilarejo são submetidos à divulgação pública de seus segredos. Será um filme bastante sombrio e violento.
P. Quando você decidiu se dedicar a ser atriz?
R. O mundo sempre me pareceu um lugar confuso e cruel. Contar histórias era uma maneira de encontrar algum sentido nele, e também para mim mesma. Atuei no teatro pela primeira vez aos 5 anos, e desde então não parei mais. A atuação tem sido uma forma de explorar partes de mim mesma antes que me dessem autorização para fazê-lo também fora do palco. É pela mesma razão que eu gosto da moda: no fundo, trata-se de contar histórias sobre os nossos corpos e identidades. Essas são as minhas obsessões. É por essa razão que me sinto bem trabalhando com isso. Em especial com as mulheres. Com os homens me parece menos divertido.
P. Por que?
R. Porque eles têm ideias e planos. São muito apegados às suas próprias visões. As mulheres funcionam diferente. Por exemplo, Jill Solloway, a criadora de Transparent, não diz o que você tem de fazer. Perto de 80% do que se viu na série são fruto de improviso. Eu li o roteiro e depois o enunciei como me pareceu melhor. Por isso é que a série tem esse ar de autenticidade tão contemporâneo. Ainda não posso divulgar, mas tenho outros projetos com diretoras incríveis. Na moda, também gostaria de trabalhar com mais estilistas.
P. Você mudou de gênero quando estava estudando na Columbia. Quais papéis você pôde interpretar então?
R. O estudo de interpretação na Columbia é muito aberto, progressista e inclusivo. Quando comecei a minha transição, avisei os meus professores que não queria mais interpretar papéis masculinos, e eles aceitaram. O problema é que, nos textos que temos à disposição, existem poucos personagens transgêneros. Eu me perguntei, então, se fazia mesmo sentido me dedicar profissionalmente a isso. Por um tempo me voltei mais para a performance artística. Mas, naquela época, saiu a Time com Laverne Cox na capa. Foi uma coisa que me reafirmou como mulher, mas também como atriz. Pensei comigo mesma que talvez eu também poderia…
P. Quais são os seus desafios hoje como atriz?
R. Sinto uma grande pressão por mais versatilidade. Passo muito tempo pensando em como me tronar mais vendável. Quero ser vista como uma atriz, e ponto, e não como uma atriz transgênero. Tenho frequentado um especialista da fala para ampliar o alcance tonal da minha voz. Hoje eu estou cansada e com o problema do fuso-horário, mas quando faço meus exercícios, fico bem mais convincente [sorri]…
P. Você acaba de usar o adjetivo “vendável”…
R. Eu sei, é uma vergonha. É uma humilhação. Mas preciso fazer isso para poder trabalhar. Mas qualquer atriz que não seja branca, magra, que tenha alguma deficiência ou não seja cisgênero dirá algo parecido. Tenho de ser muito disciplinada. Preciso melhorar.
P. Quando você disse à sua mãe que queria ser atriz, ela lhe aconselhou a não ler o que as pessoas falariam sobre você. Você seguiu o conselho?
R. Não. Eu leio tudo. Os atores que dizem o contrário estão mentindo. Tenho 24 anos e não sei com clareza quem eu mesma sou. Às vezes, penso que ler o que os outros acham de mim ajudará a me entender melhor. Mas é perigoso, e sei que não deveria fazê-lo.
P. Fazem críticas muito cáusticas?
R. Às vezes sim. Dizem que falo demais sobre o fato de ser trans. Não entendem que é sobre isso que me perguntam nas entrevistas… Toda vez que uma revista me chama de “atriz transgênero” alguém se sente no direito de opinar. Eu sou que não sou um homem. Sei que não jeito de homem. Mas é isso o que essas pessoas veem. Se lessem mais coisas sobre mim ou falassem comigo, talvez teriam uma reação diferente. Ou não. Como eu disse antes, essa visibilidade, por mais positiva que seja, é também o que me deixa exposta ao ódio e à violência. Leia o que algumas pessoas escrevem toda vez que a Gucci posta uma foto minha no Instagram… No fundo, não sou o que essas pessoas querem ver.
P. Você tem esperança de que isso mude em um futuro próximo?
R. Para falar a verdade, para mim tanto faz. Já estou aqui. Mas espero que aconteça. O que posso fazer, a não ser esperar?
Álex Vicente