Ser mulher é um risco e, quando se é negra, se torna ainda mais perigoso. Nesta reportagem especial, vítimas de diversas discriminações refletem a respeito da importância da denúncia e alertam sobre como a legitimação social tem contribuído para a violação de direitos de pessoas negras
(Fórum, 29/03/2017 – acesse no site de origem)
Estes são relatos de três pessoas que, recentemente, sofreram uma série de discriminações em Belo Horizonte por serem mulheres negras. A estudante e cantora de 18 anos Marcela Carvalho, conhecida como Madu, foi presa injustamente no dia 14 de fevereiro, acusada de ter participado de um incêndio em ônibus na capital mineira.
Madu ficou detida por quatro dias e teve que pagar fiança de R$ 937,00. O valor foi arrecadado por movimentos sociais que se mobilizaram para ajudá-la. Há mais de um mês, a jovem usa tornozeleira eletrônica e permanece em prisão domiciliar. Nesta terça-feira (28), foi realizado o julgamento do habeas corpus para a revogação da prisão e retirada do dispositivo de monitoramento.
O pedido foi negado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, apesar de Madu reunir todos os requisitos legais exigidos para responder ao inquérito em liberdade, de acordo com o advogado da estudante, Thales Viote. Madu tem bons antecedentes, ocupação lícita e residência fixa. Ainda segundo a defesa, o inquérito que investiga a autoria do incêndio está em tramitação na Delegacia de Organizações Criminosas.
A moradora da Ocupação Eliana Silva foi acolhida na Casa de Referência da Mulher Tina Martins e está há mais de um mês sem frequentar a escola. Foi presa no primeiro dia letivo do ano. “Estava muito feliz. Depois da escola, fui para a casa de uma amiga. Na volta, enquanto esperava o ônibus, uma senhora me pediu ajuda para avisar quando o dela chegasse. Ela estava com a perna ferida e sozinha. Então, me ofereci para levá-la à UPA. Fiquei um tempo lá, mas tive que ir embora porque tinha aula no outro dia. No ônibus de volta para a casa, uns adolescentes entraram e falaram para todos descerem. Eu saí correndo e eles incendiaram o veículo”, relata Madu Carvalho. A estudante afirma que foi vítima de racismo e que vai processar o Estado.
Apesar da situação que tem vivido, Madu faz planos para o futuro. Um deles é o de se tornar cantora e compositora de sucesso. Todas as letras que escreve são histórias da realidade. “Eu canto todos os estilos. Eu gosto é de cantar”, afirma. Outro desejo é o de ajudar mulheres presas: “Gostaria de fazer eventos musicais para elas”.
Outro caso que ganhou repercussão na capital ocorreu no dia 1º de março, quando a ativista do movimento negro Vanessa Beco foi detida durante a concentração do bloco Arrasta, no Morro das Pedras, região Oeste de Belo Horizonte. Segundo a Polícia Militar, ela não quis se identificar durante a abordagem, o que caracterizaria como desobediência. Porém, de acordo com a vítima, os agentes da PM agiram de forma equivocada. “Uma das várias discriminações foi a de me levar detida por desobediência com o argumento de que eu não queria me identificar, mas, desde o início, a gente se identificou”, explica Vanessa.
Por meio de nota, as advogadas Ana Paula Freitas, Mariana Septímio e Jozeli Rosa, da Rede de Advogadas Populares, que atua no caso, informaram que “o procedimento criminal contra Vanessa Beco parte da percepção de que as polícias, historicamente, se encontram completamente despreparadas para atuar com respeito à dignidade da pessoa humana junto às comunidades de favelas e a população negra, na promoção da cultura, por meio do carnaval de rua de Belo Horizonte, tendo em vista que, ao serem indagadas de forma legítima pela sua abordagem violenta e arbitrária, acusam injustamente Vanessa de praticar delito de desobediência”.
“Mais um caso de racismo institucional praticado pelas polícias, bem como pelo Poder Judiciário e seus aparatos repressivos. No dia 23 de março aconteceu audiência em que representante do Ministério Público insistiu em oferecer transação penal, mesmo sabendo de representação aberta de ofício pelo Ouvidor de Polícias do Estado de MG, pela responsabilização por abuso de autoridade por parte dos policiais militares e civis, o que coloca em questionamento a veracidade do relatório apresentado pelo delegado”, diz o comunicado.
Vanessa acrescenta que a situação em que foi detida mostra um viés de machismo e autoritarismo dos policiais. “Para além de ser uma pessoa favelada e negra, era também uma mulher se posicionando diante deles. É muito importante que as pessoas deem conta de se rever, de descer do pedestal, de pensar nos seus lugares de privilégio”, observa.
O caso mais recente que ganhou notoriedade em BH ocorreu no dia 20 de março. Ao embarcar em um ônibus, a cabeleireira afro Taciana Cristina sentiu alguém puxando o seu cabelo. Quando olhou para trás levou um tapa no rosto. “Eu perguntei por que ele tinha feito aquilo e ele disse ‘eu não gostei do seu cabelo, sua macaca!’”. O agressor é advogado, tem 70 anos e se chama Walter Roberto do Amaral. “Um homem queria bater nele. Eu impedi, porque violência gera violência” , ressalta.
Por duas vezes, Amaral tentou pegar um táxi e fugir, mas foi impedido pela vítima e por testemunhas. Na delegacia, após a cabeleireira prestar queixa e o agressor ser ouvido, o delegado definiu o delito cometido como injúria racial. Após pagar fiança de R$ 1.000, Walter Roberto do Amaral foi liberado.
Mobilizada para atuar neste novo caso, a Rede de Advogadas Populares informou, em nota, que entende que “o delito deveria ser enquadrado como racismo e não meramente no tipo penal de injúria racial, posto que existem indícios suficientes de que Walter Roberto do Amaral, ao proferir xingamentos, agrediu todo o povo negro e não somente Taciana Cristina e violentou de forma direta física e psicológica, a partir de sua crença de superioridade racial branca e da impunidade ao se apresentar como advogado.
“O pagamento da fiança arbitrada pelo delegado não encerra o caso, que já é objeto de investigação em inquérito policial e será encaminhada (para a OAB) representação via Comissão de Ética e Disciplina, a fim de responsabilização do autor do fato, por violação do Código de Ética e Disciplina”, prosseguiu.
A reportagem entrou em contato com o escritório de Walter Roberto do Amaral e solicitou uma entrevista com ele ou com seu advogado. Porém, uma funcionária afirmou que ele não irá se pronunciar sobre o delito cometido.
Racismo x Injúria Racial
Pela legislação, a injúria racial está prevista no artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal, que estabelece o delito como ofensa que atinja a subjetividade da pessoa utilizando elementos como cor, raça, etnia e religião. A pena é de 1 a 3 anos de prisão ou pagamento de fiança. “Quando se xinga uma pessoa de macaca, de crioulo, se coloca como injúria racial. Dependendo das circunstâncias, mesmo sendo detida em flagrante, a pessoa pode ser liberada e responder em liberdade”, detalha o Presidente da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB/MG, Gilberto da Silva Pereira.
Já o racismo tem uma lei específica, a 7.716/1989, e é estabelecido quando se atinge uma coletividade. É um crime que não tem fiança, não prescreve e a pena é muito maior do que a por injúria racial. “A gente tem o entendimento, e a própria Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB/MG estuda isso, que há necessidade de mudanças nessas tipificações porque quando você atinge uma pessoa de uma etnia qualificando ela como um ser inferior, você automaticamente está atingindo uma coletividade porque ela não é a única pessoa negra do mundo”, destaca.
“Então, a gente tem que lutar pela igualdade do racismo com a injúria racial. Quando vier essa mudança, teremos uma redução nos casos porque pessoas que covardemente cometem esses crimes de injúria racial, que na verdade é racismo, geralmente são pessoas com patamar mais elevado na sociedade. Elas têm condições de pagar fiança e estão certas da impunidade”, argumenta Silva.
Gilberto da Silva está desde agosto de 2016 na presidência da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB-MG. O repúdio ao racismo e campanhas de conscientização são algumas das medidas da instituição contra as discriminações recorrentes. A última campanha lançada no estado pela Comissão foi “Mostre o Cartão Vermelho para o Racismo” em outubro do ano passado.
Violência invisível
A violência contra pessoas negras em nosso país ocorre todos os dias e muitas vezes é invisível. A diferença dos casos de Vanessa Beco, Madu Carvalho e Taciana Cristina é que tiveram visibilidade. Vanessa é ativista do feminismo negro, do movimento negro e da cultura hip hop. Ela lembra que o povo negro tem sofrido cotidianamente várias violências. “Essa sociedade tem assinado embaixo de situações como o nosso genocídio, que tem sido denunciado, a gente tem um extermínio específico, o da juventude negra. São números alarmantes, diários, mensais, anuais e a sociedade não toma uma postura sobre isso, então ela está fazendo uma opção por nos matar, por nos desumanizar”, enfatiza.
As consequências psicológicas para quem sofre racismo são intensas. Taciana Cristina, por exemplo, conseguiu dormir somente quatro dias após a agressão. “Eu cochilava e sonhava por trinta minutos, acordava e depois custava a pegar no sono de novo. Você fica com medo de dormir, daquele sonho voltar e lembrar de tudo novamente”.
A cabeleireira recebeu apoio, além da família, do Instituto Todo Black é Power, onde trabalha, de membros do bloco Angola Janga e, principalmente, de outras mulheres negras. “Muitas disseram que o tapa não foi apenas na minha cara, foi na delas também, que o advogado racista ofendeu elas também. Logo, eu pensei: meu Deus, como sou amada!”.
Por Alessandra Dantas, colaboradora da Rede Fórum de Jornalismo