Parte das terras da Fazenda Soares, que pertencera a meu bisavô, o negro João de Deus Neves, foi reconhecida pela Fundação Cultural Palmares
Um ano atrás, eu desembarquei na Bahia em busca de minhas origens familiares. Já me sabia descendente do povo balanta, da Guiné-Bissau. Faltava pisar a terra que pariu as três gerações de mulheres que me antecederam. Assim, chegamos eu e minha única filha, Isabela, a Salvador e, três dias depois, a Cachoeira, cidade do Recôncavo Baiano que guardava histórias de minha mãe, de meus tios e tias, avós e bisavós maternos. Numa sucessão de supostas coincidências — pessoas de fé sabem que não foram obra do acaso, mas puro destino — encontramos certidões, documentos e endereços, ouvimos relatos de antigos vizinhos, velhos conhecidos e uma parente, até então, desconhecida. A dois dias do fim da semana de visita, a descoberta. Parte das terras da Fazenda Soares, que pertencera a meu bisavô, o negro João de Deus Neves, fora reconhecida pela Fundação Cultural Palmares como a Comunidade Remanescente de Quilombo Tabuleiro da Vitória.
Por ascendência, sou quilombola.
(O Globo, 30/03/2017 – acesse em pdf)
A longa introdução é para dar a medida da emoção de ocupar o centro de uma roda de mulheres no quilombo Maria Joaquina, divisa entre Cabo Frio e Armação dos Búzios. A linhagem, que, trazida de África, se acostou na Bahia, veio dar no Rio de Janeiro, estado onde nasci e me reproduzi. Sábado passado, primeiro aniversário da visita a Cachoeira — outra falsa coincidência — fui à Região dos Lagos para a quinta oficina da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Foi o último capítulo de um roteiro de construção de protagonismo feminino, que passou pelos estados de Goiás, Mato Grosso, Piauí e Ceará antes de alcançar o território fluminense.
Postas em círculo, cerca de 60 mulheres — e também uma dúzia de homens, um punhado de crianças — debateram com afeto e vigor acesso à terra, desigualdade de gênero, violência doméstica, extermínio de jovens negros, empreendedorismo, trabalho e renda. Em respeito à ancestralidade, pisei descalça na terra batida onde — soube ontem — ficava o Terreiro de São Jorge, Ogum no sincretismo, para falar sobre o impacto das reformas do Estado na população negra, mulheres, em particular. Como são maioria entre pobres, pouco escolarizados, moradores de habitação precária, desempregados, informais, pretos e pardos sofrerão mais com o arrocho orçamentário na saúde, na educação, na assistência social e com o endurecimento das regras de acesso à previdência e aos benefícios de prestação continuada.
O Brasil tem 2.849 comunidades quilombolas reconhecidas pela Fundação Palmares, mas somente 86 já conseguiram título de propriedade do Incra; 82 estão na fase final do processo, com decreto de desapropriação pronto ou publicado no Diário Oficial da União. O Estado do Rio tem 34 áreas certificadas, três tituladas — Campinho da Independência (Paraty), Preto Forro (Cabo Frio) e Marambaia (Mangaratiba) — e duas na etapa derradeira — Santana (Quatis) e Cabral (Paraty). Outras quatro — Sacopã (Rio de Janeiro), Alto da Serra do Mar (Rio Claro e Angra dos Reis), São Benedito (São Fidélis) e Botafogo-Caveira (São Pedro da Aldeia) — têm portaria de demarcação territorial publicada e esperam a assinatura do decreto presidencial.
A luta dos quilombolas é por terra, direitos sociais, trabalho e renda. No quilombo Maria Joaquina, a comunidade quer recuperar o velho moinho de farinha, destruído pelo efeito do tempo e pelas fortes chuvas de 2016, para produzir tapioca, derivado mais valorizado da mandioca nos dias de hoje. Da vegetação do terreno, saem banana, carambola, abacate e noni, o fruto a que os antigos atribuem efeitos benéficos à saúde. Nenhuma fruta é vendida; são consumidas pela comunidade ou doadas aos vizinhos. Porque as comunidades quilombolas nasceram da luta pela liberdade, mas também das tradições culturais e religiosas, dos modelos tradicionais de produção, dos laços familiares e das redes de solidariedade do povo oprimido.