Diálogo colocou em foco o fluxo e a organização da rede de atendimento a crianças com microcefalia. Encontro também destacou direitos sexuais e reprodutivos das mulheres
Entre agosto de 2015 e março de 2017, o Rio de Janeiro registrou mais de 900 casos de microcefalia associada ao zika vírus. Durante o ápice da epidemia, o estado também esteve entre os de mais alta incidência de gestantes com diagnóstico de contaminação pelo vírus. Para melhor compreender as medidas adotadas pelo poder público diante do problema, o Ministério Público Federal (MPF) promoveu na quarta-feira, 29 de março, uma mesa redonda que teve como foco a prevenção, o combate e a assistência às mulheres afetadas pelo zika vírus.
(PGR, 03/04/2017 – acesse no site de origem)
O diálogo foi realizado pelo Ofício da Tutela Coletiva da Saúde da Procuradoria da República no Rio de Janeiro, com apoio da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), também do Ministério Público Federal. A iniciativa integra um conjunto de ações desenvolvidas pela PFDC com vista a aprimorar e fortalecer políticas públicas voltadas à questão.
Na oportunidade, órgãos de saúde e de fiscalização sanitária das secretarias estadual e municipal apresentaram o fluxo de atendimento e a organização da rede de atenção a vítimas do zika. O Ministério Público Federal buscou informações acerca das ações de vigilância em saúde para o combate ao vetor, da identificação precoce de síndrome neurológica, da rede de assistência para as famílias e as crianças afetadas, bem como sobre a capacitação de profissionais da saúde e de cuidadores.
“É fundamental estabelecer um diálogo ativo com gestores públicos, assim como a escuta de profissionais da área e, especialmente, de mães e mulheres atingidas pelo zika. Os direitos das mulheres devem estar na centralidade deste debate”, ressaltou a procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat.
A perspectiva também foi defendida pela representante do escritório da ONU Mulheres no Brasil, Nadine Gasman: “As vozes das mulheres precisam ser ouvidas. Reconhecer o protagonismo das mulheres, especialmente no contexto de seus direitos sexuais e reprodutivos, é essencial para uma resposta integral à epidemia do zika”, apontou.
Para Fernanda Lopes, representante do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), além da perspectiva de gênero, a atuação também necessita incorporar a questão de raça e de classe: “sabemos que há um perfil bastante determinado das pessoas atingidas pelo zika: são mulheres negras e pobres – vítimas da falência das políticas de saneamento, de educação, de saúde e de direitos sexuais e reprodutivos”.
Demandas – Graves comprometimentos motores, irritabilidade acentuada, dificuldades de visão, fala e audição, convulsões intermitentes e problemas na deglutição são algumas das características que marcam a criança com microcefalia. O cuidado a esses bebês demanda, portanto, atenção permanente e a necessidade de acesso a serviços que possam controlar as complicações, estimular o desenvolvimento de habilidades e melhorar a qualidade de vida da criança.
“Além de medicamentos de uso contínuo, meu bebê necessita do atendimento de neurologistas, fisioterapeutas, fonoaudiólogos e uma série de outras especialidades. Felizmente, minha condição econômica me permitiu contratar um plano privado de saúde, mas a realidade da grande maioria das famílias de crianças com microcefalia é bastante diferente. Elas permanecem à mercê do atendimento público e precisam percorrer serviços que ficam a quilômetros de distância. Conheço mães que moram na Baixada Fluminense, por exemplo, que precisam pegar um trem e dois ônibus para agendamento de consultas e de serviços especializados – muitos, com oferta precária. Assim como eu, grande parte dessas mulheres precisou deixar seus empregos e muitas ainda sofrem com o abandono de seus companheiros”, relatou Vanessa Caldas, mãe de Dimitri, de um ano e quatro meses. O menino nasceu com microcefalia, mas o problema de saúde só foi descoberto pelos pais após o parto, quando Vanessa leu na ficha de registro do cartório o nome da má formação.
Entidades de defesa dos direitos da mulher, especialistas e profissionais da área da saúde também participaram do diálogo promovido pelo MPF e reforçaram a importância da identificação de problemas na estruturação da rede de atenção básica e no fluxo dos serviços necessários à atenção contínua e à reabilitação das crianças.
“Trabalho no Instituto Estadual do Cérebro e gostaria de compartilhar algumas angústias. O Instituto atua apenas no diagnóstico da microcefalia, a partir de uma avaliação multidisciplinar. Hoje não saberia informar o encaminhamento dado a essas crianças diagnosticadas: quais serviços de reabilitação estão sendo oferecidos pela rede pública? Qual a capacitação disponibilizada ao cuidador dessa criança? Como está o acompanhamento do desenvolvimento dos marcos de linguagem? Pois sabemos que a oftalmopediatria, por exemplo, é uma especialidade pouco presente na rede pública”, pontuou a médica Fernanda Fialho.
Além da necessidade de que seja ampliada a oferta e a integração dos serviços, também foi destacada a importância do apoio à rede familiar da criança com microcefalia – o que envolve políticas de gratuidade no transporte público, acesso a equipamentos como cadeiras de rodas e óculos, além da inclusão de medicamentos de uso contínuo, como anticonvulsivantes, na lista de remédios disponíveis na Farmácia Popular.
Direitos da mulher – Durante o diálogo, mães, organizações sociais e profissionais da saúde ressaltaram que os cuidados com as crianças afetadas pela microcefalia e outros agravos recaem, especialmente, sobre as mulheres. Uma análise de 5.194 casos suspeitos da síndrome congênita do zika — registrados pelo Ministério da Saúde em todo o País, no período de 4 de janeiro de 2015 a 27 de fevereiro de 2016 — revelou que 71,3% das mães dessas crianças tinham de 15 a 29 anos. Quase 77% das mães se declararam pardas e 7,8% se disseram negras.
“Os gestores públicos precisam estar atentos ao fato de que existe uma pessoa entre o mosquito e a criança afetada: que é a mulher. A maioria delas são negras e passam por essa situação na solidão, abandonadas por seus companheiros e com extrema dificuldade financeira”, ressaltou Lúcia Xavier, da organização não-governamental Criolas.
A representante do Grupo Curumim destacou a importância de assegurar políticas públicas voltadas aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres no Brasil. Segundo ela, há enorme desconhecimento por parte das populações mais afetadas pelo zika: “a epidemia traz a responsabilidade de discutir a questão seriamente. A proibição da interrupção da gravidez, por exemplo, é uma lei de 1940. Um pedido de inconstitucionalidade da legislação foi apresentado ao Supremo Tribunal Federal, por meio da ADPF 442. Às mulheres que decidem pela manutenção da gravidez com microcefalia devem ser asseguradas as políticas necessárias para o cuidado aos bebês. Às que não desejam prosseguir com a gravidez, também deve ser garantido o direito à tomada de suas próprias decisões – em conformidade com os direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal de 1988”, destacou.
As questões levantadas durante o encontro serão debatidas com gestores públicos, em reunião que será convocada pela Procuradoria da República no Rio de Janeiro. O diálogo será conduzido pelas procuradorRas da República Roberta Trajano, Marina Filgueira e Aline Caixeta – responsáveis por acompanhar as ações de controle do Aedes Aegypti e por resguardar os interesses e a saúde das mulheres e dos bebês infectados pelo vírus Zika no estado.
Sala de Situação – O Ministério Público Federal também participou de reunião da Sala de Situação de Saúde sobre vírus zika, realizada no Rio de Janeiro nos dias 27 e 28/3. O encontro reuniu especialistas, organizações da sociedade civil, organismos internacionais e mulheres afetadas pelo vírus. A iniciativa foi criada em 2016 pela ONU Mulheres e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) como um instrumento para centralizar, articular e sistematizar informações sobre a infecção pelo vírus zika e suas consequências no Brasil e a nível internacional. O objetivo é apoiar as decisões dos níveis federal, estadual e municipal.
Descriminalização do aborto – Aproveitando a presença na cidade do Rio de Janeiro de instituições que são referência no debate sobre direitos sexuais e reprodutivos, foi realizado ainda diálogo sobre aborto legal e seguro no Brasil. O encontro contou com a participação da procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, e do procurador da República Sérgio Suiama, coordenador do Grupo de Trabalho Direitos Sexuais e Reprodutivos da PFDC. O diálogo colocou em pauta a ADPF 442, que questiona no STF a criminalização do aborto. A proposta é que o Grupo de Trabalho da PFDC possa elaborar nota técnica para subsidiar o parecer que o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, apresentará no âmbito da ação no Supremo. Além de profissionais da saúde e do direito, o diálogo também contou com a participação de coletivos como CFemea, Anis e o Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem).
Assessoria de Comunicação e Informação – ACI
Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão – PFDC/MPF