Beatriz Cannabrava, a Bia, é uma das fundadoras da Rede Mulher de Educação e da Repem – Rede de Educação Popular entre Mulheres da América Latina e do Caribe. Durante a ditadura militar brasileira, ela e seu companheiro, o jornalista Paulo Cannabrava, viveram exilados no Peru, México, Cuba, Panamá. Cantora, foi professora de música por muitos anos. Ao voltar ao Brasil, com a Anistia em 1979, aplicou sua prática didática e sensibilidade na educação popular voltada para grupos de mulheres de baixa renda. Para Bia, em geral, as mulheres sempre acalentaram o desejo de viver em paz com a família, a comunidade e o meio ambiente. Beatriz também é tradutora e minha parceira na coluna En Espanõl do Fernanda Pompeu Digital. Abaixo, todas as ideias são dela:
(Fernanda Pompeu, 06/04/2017 – acesse no site de origem)
A construção da paz
Para mim, o grande desafio não é apenas denunciar as atrocidades das guerras. Paz não é só ausência de conflitos armados. Paz é construção. É também árduo caminho para encontrar soluções que derrotem os inimigos cotidianos. Esses inimigos são as violências econômicas, sociais, culturais e de gênero.
O conceito de gênero é muito útil, uma vez que esclarece que ser homem e ser mulher é uma construção sociocultural. Uma invenção. As pessoas e as instituições, sabendo ou não, participam de um conjunto de relações de gênero – que inclui formas e padrões que a sociedade vai chamando de coisas de mulheres e coisas de homens.
Todos os países e culturas, mesmo que em diferentes escalas, reforçam o mito da superioridade masculina, criando uma estrutura que domina, reprime, desvaloriza e subordina as mulheres. Daí, para ter paz, é preciso buscar justiça de gênero.
O encontro com as mulheres
Meu interesse pelo feminismo surgiu no ano de 1975, na Segunda Conferência Mundial sobre a Mulher da ONU. Realizada no México. A Conferência reuniu feministas e grupos de mulheres do mundo inteiro. Foi lá que tive o privilégio de conhecer a pensadora e escritora Ana Montenegro (1915 – 2006). Ana começou a trabalhar com as mulheres na década de 1940 e tinha muito a nos ensinar.
No México, também estava Moema Viezzer, educadora popular e umas das primeiras pessoas a pensar no trabalho em rede. Moema também é autora de um clássico: Se me Deixam falar, denso depoimento de Domitila Barrios de Chungara narrando a opressão vivida nas minas bolivianas. Pois bem, nessa Conferência me deu um estalo: trabalhar a educação popular com as mulheres.
Criação da Rede Mulher
Reencontrei a Moema Viezzer na volta ao Brasil. A gente estava procurando onde atuar. As organizações de mulheres que existiam não se encaixavam no que queríamos. Nosso objetivo era trabalhar com educação.
No ano de 1983, fundamos com outras companheiras a Rede Mulher de Educação. O primeiro trabalho, um projeto financiado, foi pesquisar clubes de mães e grupos de mulheres da zona leste de São Paulo – região majoritariamente popular.
O conceito era fazer a pesquisa e devolver os resultados para as pesquisadas. Foi um processo maravilhoso. Muito produtivo também. A fotógrafa Nair Benedicto fez um audiovisual que entrou para a história. Um grupo da PUC-SP, que mais tarde fundaria o Instituto Pólis, editou uma revista.
As próprias mulheres da Leste criaram um grupo de teatro que resistiu por muitos anos. Esse primeiro projeto teve uma repercussão enorme e acabou dando origem à Amzol – Associação de Mulheres da Zona Leste, existente até hoje.
Agora, temos mais de trinta anos de trabalhos. Houve muitas crises, mudanças de rota, alinhamentos, retificações, mas nunca perdemos o foco na educação popular feminista.
Educação popular feminista
A ideia básica foi juntar os princípios da pedagogia de Paulo Freire com a questão de gênero. De forma resumida, a prática do recifense e depois internacional Paulo Freire (1921-1977) se baseia no conhecimento dos chamados educandos.
Isto é, essa pedagogia reconhece que ninguém é uma folha em branco esperando que o professor encha de informações. A partir daí, a educação popular passa a ser uma troca contínua entre quem ensina e quem aprende.
Por exemplo, no começo a gente não falava em feminismo, porque feminismo era entendido como uma coisa de mulheres ricas, mulheres de laquê – como definia uma mulher da zona leste.
A gente não falava em feminismo, mas ia introduzindo as questões de gênero. Perguntávamos: Quais são as diferenças reais entre homens e mulheres? Então elas foram identificando os papéis devastadores da opressão e do machismo em suas vidas. Depois partimos para as oficinas de educação popular.
Oficinas de educação popular
Oficina por quê? Porque você junta. Usamos um exemplo bem conhecido do nosso público de interesse: a oficina de costura. Nela, tem uma que sabe cortar, a outra tem a máquina e sabe costurar, a outra é habilidosa nos bordadinhos, a outra é boa para sair e vender as roupas. Numa oficina de costura, você reúne todo mundo para produzir peças de roupa que serão comercializadas.
Então aplicávamos o modelo da oficina de costura para uma prática de criação do conhecimento. Do simples e palpável para algo complexo e exigente de abstrações.
Um salto político
No ano de 1985, no Brasil da redemocratização, surgiu a oportunidade de trabalhar pela Constituinte. As mulheres do Brasil inteiro começaram a achar que tinham que fazer alguma coisa. Vai ter uma Constituinte? Nós temos que participar!
A Rede Mulher passou a centralizar reivindicações de mulheres de baixa renda do país inteiro. Tinham a ver com creches, escolas, moradias, saneamento básico, saúde, reprodução.
Esse conjunto de ideias ajudou a propor a emenda popular sobre os direitos da mulher. Dessa emenda popular, muitas ideias foram aproveitadas na Constituição do ano de 1988, a Constituição Cidadã. Por exemplo, a licença-maternidade com 120 dias remunerados.
Formando formadoras
De uns anos para cá, decidimos concentrar o trabalho da Rede Mulher de Educação na formação de formadoras e formadores, pois há alguns homens, poucos, mas há.
Passamos a investir no efeito multiplicador. Isto é, trabalhar com lideranças que, por sua vez, vão multiplicar o que aprenderam nas bases.
Então redefinimos a Rede Mulher de Educação como uma escola para formadores. Produzimos muitos manuais, cartilhas, audiovisuais. Enfim, uma série de ferramentas com vocação de disseminação.
As veias femininas da América Latina
Paralelamente a essas atividades, nos aproximamos do trabalho de educação popular feminista de muitos países latino-americanos.
Dessa aproximação, cheia de trocas, nasceu a Repem – Red de Educación Popular entre Mujeres de América Latina y el Caribe -, da qual fui diretora por oito anos.
A Repem é uma grande difusora de informações e conhecimentos de educação popular para mulheres. Inclusive com presença continuada na web, com o boletim La Red Va.
Ativos das mulheres
Um conceito muito interessante para a educação popular feminista é o do Ativos das Mulheres. Esse conceito foi desenvolvido pela mulher que conceituou os sistemas de gênero, a fantástica antropóloga Jeanine Anderson.
Ativos são os recursos econômicos, culturais, educativos que todas as mulheres têm. Mesmo quando não identificam esses recursos. Em outras palavras, as mulheres sabem mais do que pensam que sabem.
Há uma razão histórica para essa dificuldade de autoidentificação dos ativos: a desvalorização dos saberes femininos. Aí a educação entra forte para ajudar as mulheres a mapearem seus ativos. E mais importante: ajudá-las a conseguir novos ativos.
Não tenho recurso educativo, como eu posso estudar mais? Não tenho recurso de renda, como posso ir atrás? Trata-se de inverter a lógica dominante. Trata-se de jogar luz no que se tem e não no que falta.
O trabalho pela paz
Por fim, todo esse trabalho de educação popular com as mulheres e alguns homens tem tudo a ver com construção da paz.
Por exemplo, a formação de redes de apoio a mulheres vítimas de violência. À medida que a mulher melhora sua autoestima, ela fica mais poderosa.
Ela percebe que tem forças para sair da situação de violência e, também, trabalhar por uma sociedade mais solidária. A educação desperta possibilidades de crescimento pessoal e coletivo. Ela é poder.
Publicado originalmente no livro Mulheres Fazendo Pazes, da Associação Mulheres pela Paz.
Brinde: o casal Cannabrava