Esse tipo de violência é mais aceita nos relacionamentos que a violência física, mas pode causar mais danos
Os maus-tratos psicológicos entre casais são um tipo de violência, eu diria que o mais generalizado e, sobretudo, o mais normalizado. É um tipo de violência pouco detectável, difícil de provar, embora seu poder lesivo possa ser imensamente superior ao da violência física, muito mais óbvia e na qual vítima acaba tomando medidas para se defender ou proteger. É sutil, intermitente, mas constante, o que deriva numa grande dependência emocional por parte de quem o sofre, por causa da destruição lenta, mas segura, da autoestima da vítima. E esse é o seu maior poder de agressão, a progressiva anulação da pessoa maltratada, que chega a duvidar inclusive do seu próprio valor como ser humano. A desvalorização e a culpa são os protagonistas emocionais de um fino trabalho de distorção da realidade em que a pessoa passa a crer que merece isso, que ninguém mais irá querê-la, e que esse é o preço de não ficar sozinha e não assumir o estigma de fracasso contido num divórcio.
(El País, 31/03/2017 – acesse no site de origem)
Uma pista para identificar esses abusos é a tendência a ocultar coisas por medo da reação depreciativa ou desproporcionada do outro: temor de contradizê-lo, deixar que ele tome decisões no seu lugar, aceitar fazer sexo sem ter vontade, evitar opinar em público diante dele, observar que ele minimiza seus feitos e lhe culpa pelos erros, que ocupa o papel de uma mãe ou pai que sabe o que é bom para você, organiza seu tempo livre sem lhe consultar, olha o seu celular, provoca tensão ou medo de errar, julga o que você faz, diz ou veste, responsabiliza você pelo estado de ânimo dele(a) mesmo(a), faz você se afastar pouco a pouco das relações que são só suas (amigos, família), até que, definitivamente, você vai deixando de ser você para se tornar uma espécie de fantasma que tenta se encaixar num suposto modelo feito sob medida para os desejos de outra pessoa. É terrorismo íntimo.
A maioria dos estudos epidemiológicos concluem: há muito mais mulheres do que homens vítimas de violência psicológica no contexto das relações de casal. Uma das conclusões extraídas do primeiro estudo sobre violência doméstica realizado pela OMS, em 2005, foi que a violência mais habitual na vida das mulheres é exercida pelo cônjuge, superando o índice de agressões consumadas por conhecidos ou estranhos.
As consequências dos maus-tratos psicológicos reiterados são de toda espécie, já que submetem a pessoa a estresse crônico, o que propiciará a aparição de doenças físicas ou servirá como estopim daquelas que só estavam em estado latente. Alguns sintomas visíveis que respondem à somatização do estresse emocional são ansiedade, problemas com o sono e/ou alimentação, cansaço crônico, cefaleias, tristeza, apatia, depressão, consumo de psicofármacos e alto risco de abuso do álcool.
Não há um perfil específico de pessoa mais vulnerável aos maus-tratos, pois ele se dá em todas as culturas e contextos socioeconômicos. O que há é um perfil de pessoa maltratada psicologicamente, já que essa forma de violência vai configurando mudanças na personalidade de quem a sofre, tais como insegurança e baixa ou nula autoestima, percepção de impotência para manejar o entorno, culpabilidade, sensação de fracasso na vida, sentimentos ambivalentes e tendência a minimizar a gravidade dos maus-tratos, ou mesmo justificá-los adotando a visão de realidade do agressor, sem ter consciência de que em muitos casos se é vítima de maus-tratos psicológicos. Isto é mais frequente do que se acredita: há grandes doses de violência normalizada nas relações, e especialmente nas de casal.
Vão sendo toleradas pequenas humilhações, sutis desprezos, violações da intimidade mediante a permissão, explícita ou não, de olhar meu celular ou minhas redes sociais; submeto-me ao seu julgamento sobre mim, começo a pedir permissão (e não a opinião) para tomar decisões, aguento seus surtos de irritabilidade para não piorá-los, aceito repetidamente as desculpas, e tudo isso sustentado pela crença de que o amor tudo pode, e que se quisermos que dure é necessário ser flexível. Quando dizemos na terapia de casal que o amor é condição necessária, mas não suficiente, as pessoas se surpreendem. Fizeram-nos acreditar que, uma vez que a gente ama, o resto está feito, e vamos transitar durante o resto da nossa vida por um fluido caminho de rosas. Quando aparecem formas tóxicas de se vincular, muita gente as suporta em nome do amor, e em nome desse suposto amor (que não o é) um vai degradando o outro, vai anulando, a tal ponto em que chega um dia em que esse outro já não sabe nem quem é, nem em que sua vida se transformou.
Quanto ao perfil da pessoa que comete os maus-tratos psicológicos, é paradoxalmente alguém extremamente dependente e inseguro, com escassa capacidade empática, muito controlador.
É verdade que as estatísticas refletem que um alto índice de abusadores psicológicos procedente de lares onde foram educados sob modelos de relação baseados nos maus-tratos e no controle, e também que o uso e abuso do álcool favorecem a aparição deste padrão de conduta. Entretanto, essas são variáveis que explicam apenas parcialmente um padrão de comportamento tóxico, já que em última instância todos somos livres para escolher como queremos ser e que tipo de relações queremos construir.
Insisto em que as circunstâncias influem, mas não determinam, logo nada justifica os maus-tratos contra outros, ainda que eles mesmos tenham sido vítimas.
Olga Carmona