Ele era tão bom para mim, nem me batia, por Mariliz Pereira Jorge

20 de outubro, 2016

Ele não gostava que eu passasse batom escuro, nem unha vermelha. Parei de usar as roupas que gostava e só me vestia do jeito que ele queria. Mas eu tinha que ficar bonita para ele, não para os outros ou para mim. É o que ele dizia. Ele era muito bom para mim. Nem me batia.

(Folha de S.Paulo, 20/10/2016 – acesse no site de origem)

No começo do relacionamento ele era muito carinhoso, aos poucos foi ficando agressivo. Ele gritava por qualquer motivo, me assustava, às vezes eu tinha medo. Mas ele era tão bom comigo, nem me batia.

Eu era uma mulher confiante e bem resolvida, mas ele me fez perceber que, na verdade, eu era desastrada, não sabia fazer as coisas direito e era incapaz de cuidar da minha vida sozinha. Tão bom alguém para cuidar da gente. Ele era muito bom para mim, nem me batia.

Uma vez ele jogou os pratos na parede porque eu tinha colocado sal demais na comida. Ele tinha pedido lasanha, mas acabei fazendo bife à milanesa. Não custava ter feito o que ele havia pedido e prestar mais atenção na hora de temperar a comida. Que burra, eu. Logo com ele que era tão bom comigo. Nem me batia.

A gente discutia muito, mas no meio das brigas ele me deixava confusa e, então, eu percebia que tudo era minha culpa. E ele ainda me perdoava. Um homem que perdoa é um bom homem. E nem me batia.

Fui promovida com salário maior, carro e bônus, mas ele me fez perceber como eu trabalharia mais, como a empresa queria, na verdade, me explorar, eu teria que viajar e abrir mão de passar mais tempo com ele. Se não fosse ele, eu teria sido consumida pelo trabalho. Acabei pedindo demissão. Tão preocupado com o meu bem-estar. E ele nem me batia.

Ele não atendia o celular, desaparecia, eu nunca sabia onde ele estava, nem com quem. No começo eu perguntava, a gente discutia, mas ele ficava muito nervoso, jogava as coisas no chão, então, passei a fazer de conta que não sentia perfume de mulher nas roupas dele. Ele dizia que me amava. E ele nem me batia.

Tentei me separar muitas vezes, mas ele dizia que se suicidaria, que não podia viver sem mim. Eu me sentia culpada e desistia. Imagine um homem que se mataria por causa do seu amor. Ele era muito bom pra mim. E nem me batia.

Ele tinha todas as minhas senhas. Mas parei de usar as redes sociais, uma bobagem aquilo lá. Ele implicava com os likes dos amigos. Eu me estressava com os comentários das mulheres no perfil dele. Ele também não gostava que eu postasse nossas fotos, dizia que despertava inveja. Tão cuidadoso com o nosso relacionamento. E nem me batia.

Ele cuidava nas minhas contas, nunca fui boa com números, não sabia quanto dinheiro tinha. Ele controlava meu salário, meu cartão de crédito, não deixava que eu gastasse muito. Descobri que meu nome estava no Serasa porque ele usou meu cartão para umas compras e não tinha pago. Mas ele fez um empréstimo em meu nome, claro, e resolveu tudo. Como eu poderia reclamar de um homem desse? E nem me batia.

Eu parei de trabalhar porque ele queria que eu estivesse em casa sempre que ele chegasse do serviço. Queria que eu estivesse bonita, com o jantar pronto. Tem prova maior de amor do que um homem querer você só para ele? E ele nem me batia.

Ele sempre me comparava a outras mulheres. Mostrava como elas eram mais bonitas, mais gostosas, mais elegantes, mais inteligentes, mais espertas. Era um estímulo para que eu tentasse ser melhor a cada dia. Nunca era o suficiente. Mas eu sei que era para o meu bem. E ele nem me batia.

Eu parei de ver meus amigos e mal conseguia encontrar meus familiares porque ele estava sempre ocupado, nunca tinha tempo, a vida tinha outras prioridades. Por que não ia sozinha? Ahhh porque sentiria falta dele. Ele me disse que eu não me divertiria sozinha. Isso é muito amor, não é mesmo? Ele era assim, e nem me batia.

Eu me sentia triste, desvalorizada, feia, maltratada, desrespeitada, enganada, insegura. Mas relacionamentos são assim, difíceis. E ele dizia que me amava. E ele nem me batia. Até que percebi aos poucos que vivia uma relação doentia e abusiva, e enxerguei como estava inteira machucada por dentro, sem nunca ter levado uma única porrada.

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