Nenhum escritor americano se divertiu mais com coisas sérias do que Colson Whitehead, nos últimos 20 anos.
Se Ishmael Reed e Thomas Pynchon tivessem montado um grupo de teatro do absurdo, poderiam facilmente ter escolhido Colson Whitehead como nome. O grupo teria surgido em 1969, em Manhattan, ganhado força em Harvard e se desenvolvido na Redação do “Village Voice”, jornal no qual Whitehead foi crítico de TV por alguns anos.
(Folha de S.Paulo, 11/04/2017 – acesse no site de origem)
Whitehead certa vez disse que gostava do emprego porque permitia que ele trabalhasse só quatro horas por semana. Nas outras 30, ele começou a escrever seu primeiro livro, “A Intuicionista”, uma paródia de história de detetive que é também uma brilhante evocação do conceito de avanço racial, em uma cidade parecida com Nova York, mas algo diferente.
Ao longo de sua carreira, Whitehead vem sendo o carrancudo poeta laureado da cidade onde vive. Contraposto à sua sequência de romances e ao humor absurdo que os ilumina em lampejos, há um segundo veio, no qual ele investiga e inverte os conceitos de raça e justiça racial.
O sexto romance de Whitehead, “The Underground Railroad”, é uma narrativa histórica sobre o que aconteceu e poderia ter acontecido na vida de uma adolescente chamada Cora, que foge de uma plantação na Geórgia. Ela corre de Estado a Estado, da Carolina do Norte até Indiana e além, sempre tentando escapar de Ridgeway, um caçador de recompensas.
O livro, que sai no Brasil no mês que vem pela HarperCollins, com o título “The Underground Railroad – Os caminhos para a liberdade”, é um best-seller nos EUA, tendo chegado ao primeiro posto na lista de mais vendidos do “New York Times” e recebido críticas altamente elogiosas.
Whitehead ganhou uma das “bolsas para gênios” da Fundação MacArthur e uma série de prêmios, além de ter sido finalista em outros tantos. Com “The Underground Railroad – Os caminhos para a liberdade”, ele conquistou dois dos maiores prêmios literários dos EUA, o National Book Award, em 2016 e, nesta segunda (10), o Pulitzer.
Esta entrevista foi editada a partir de uma conversa ocorrida no palco do Festival de Escritores de Vancouver, em novembro passado.
Folha – Você já disse que esse livro passou muito tempo germinando. Quanto? E por que você esperou para escrevê-lo?
Colson Whitehead – Eu estava terminando de escrever “John Henry Days”, no começo de 2000, quando encontrei uma referência à Ferrovia Subterrânea e lembrei de quando tinha ouvido falar sobre ela, na quarta série. Era um termo muito evocativo. Eu a imaginava literalmente como uma ferrovia sob a terra que os escravos podiam usar para fugir, até que na escola me explicaram como era.
Parecia servir como premissa para um romance, mas não havia muita história ali, e por isso acrescentei como complicador o ingrediente de que, cada Estado que o protagonista atravessa –na época o protagonista era homem–, Carolina do Sul, Carolina do Norte, representa uma possibilidade diferente para os EUA, meio que alternativa do que poderia ter existido. A ideia parecia muito boa, mas eu sabia que, se tentasse escrevê-la naquele momento, eu não teria conseguido, porque ainda não estava maduro o bastante.
Sempre tenho essas ideias e penso “isso é realmente bom; se eu fosse um escritor melhor, conseguiria colocar no papel”. E então tento me tornar um escritor melhor para fazer jus à ideia. Sempre que concluía um livro, eu voltava à ideia e tentava decidir se estava pronto. A resposta era sempre não, e por isso eu escrevia outro livro, até cerca de dois anos e meio atrás.
Eu tinha vendido um livro à minha editora, a trama já estava delineada. A ideia parecia boa, mas o conceito do livro me voltava o tempo todo à mente, e ntão comentei com minha mulher. Ela respondeu: “Não quero dizer que sua ideia de um romance sobre um escritor em Brooklyn vivendo uma crise de meia-idade seja idiota, mas esse livro sobre a Ferrovia Subterrânea parece muito bom”.
Você disse uma vez que Lila Mae, de “A Intuicionista”, também começou como homem e que fez do personagem uma mulher porque isso o assustava. Qual foi o motivo para fazer do narrador do novo romance uma mulher?
Acho que sempre me esforço para não me repetir demais. Sempre que escrevo alguma coisa, termino cansado do formato. É um modo de manter o frescor das coisas para mim.
Eu tinha escrito três livros em seguida narrados por homens e, por isso, precisava mudar. Uma das primeiras narrativas de escravos que li na escola foi a de Harriet Jacobs –uma mulher que fugiu de seu dono e supostamente passou sete anos escondida em um sótão, antes de conseguir escapar da Carolina do Norte. Ela diz, no começo daquele livro, que, quando uma menina escrava chega à puberdade, começa o pior período para ela, porque se torna presa sexual do senhor de escravos, dos feitores, de outros escravos, e tem a obrigação de produzir bebês –quanto mais bebês, mais gente para colher algodão, e mais algodão queria dizer mais dinheiro. A menina era obrigada a produzir pessoas que pudessem se tornar máquinas de fazer dinheiro para o senhor de escravos.
Os terrores específicos de ser uma escrava pareciam merecer um estudo em ficção, e voltar àquela primeira inspiração me fez pensar: por que não uma protagonista mulher?
Em “John Henry Days”, “A Intuicionista” e no novo livro, você fala de como a questão racial está indelevelmente conectada à maquinaria do capitalismo. Fico imaginando se contar a história de Cora foi como que criar um antídoto para aquela maquinaria.
Todo mundo está aprisionado na máquina de diferentes maneiras. E há as pessoas que escapam, e essas são as pessoas na Ferrovia Subterrânea, como Cora –que alguém escape representa uma traição da ordem. É claramente assim que Ridgeway encara a situação. Se você permitir que muitas pessoas escapem, a sociedade escravocrata se dissolve.
Os escravos se rebelam de diferentes formas, seja cuspindo na sopa do senhor, seja fugindo. O livro é sobre o grande e heroico gesto de escapar de um sistema, um ato de verdadeira bravura, que solapa as ideias sobre as quais aquela sociedade se ergueu.
Você começou a escrever o livro em 2014, ele saiu em 2016. Você escreveu muito rápido. Como é que o processo acontece? O que acontece depois que você delineia a história?
Preciso saber o começo e o fim, mas o meio pode estar indefinido. Creio que o meu jeito nerd de pensar sobre isso é que encontrar as palavras certas a cada dia já é difícil o bastante; se você não sabe o que vai acontecer, a dificuldade dobra. A cada dia acordo e, por exemplo, descrevo o pai de Ridgeway, a ferraria. São duas páginas, um bom dia de trabalho. Descrevo Ridgeway, e como ele vai para Nova York, mais uma. Às vezes você só consegue produzir uma página, às vezes consegue fazer duas coisas diferentes. Mas me imponho uma tarefa.
Tento produzir oito páginas por semana. Hoje em dia, esse parece ser o ritmo de uma boa semana. Tenho que pegar as crianças na escola, e há dias menos produtivos, de vez em quando. Se tenho uma consulta médica às 13h, penso que nem vale a pena começar a escrever. Meço minha vida com base em quanto tempo vai demorar para que eu acabe a próxima coisa horrível que tenho de fazer. Um romance é uma dessas coisas. Estou oito páginas mais perto de terminar o trabalho. E depois tiro 18 meses de folga, para lecionar, promover meus livros ou seja lá o que for –ficar curtindo minha rabugice.
Certa vez, você disse: “não considero a história muito confiável. Há a história branca e a história negra”. Você ainda sente isso, após este livro?
Com sorte, o livro talvez possa ser um acesso para pessoas diferentes pensarem a história de maneira diferente. Não tenho um público em mente ao escrever. Estou só tentando resolver um problema meu, com esses livros.
Mas quanto a esse tema específico –escravidão e raça nos Estados Unidos–, sim, estamos todos implicados nisso. E creio que a estrutura do livro permita uma conversação diferente sobre a história.
A seção sobre a Carolina do Norte, por exemplo, foi inspirada por Harriet Jacobs. Quando as pessoas pensam sobre alguém que se esconde no sótão para escapar a um regime opressivo, pensam em Anne Frank. Como posso falar sobre a opressão dos negros em 1850, e sobre a supremacia branca em 1850, de modo que isso também fale sobre a supremacia branca nazista?
E agora não estamos falando apenas de escravidão, mas sobre toda forma de demonização do outro em épocas diferentes –como isso não muda. Há personagens brancos malévolos no livro, vilões negros, heróis negros.
Creio que, se a sua família já vivia nos Estados Unidos na época da escravidão, é difícil, como branco, contemplar o fato de que seu ta-ta-tataravô estuprou, torturou e abusou de pessoas para ganhar a vida e transferiu esse conhecimento aos filhos dele: “É assim que se ganha a vida”.
Se você é negro e está confortavelmente instalado na classe média, se representa a terceira geração de sua família a ter curso superior, se você “encontrou o sucesso”, de acordo com o padrão norte-americano para isso, de que forma deve contemplar a imensa brutalidade a que seus ancestrais foram submetidos?
A escravidão é difícil de contemplar, seja você negro ou branco. Acho que se esse livro, por causa da maneira pela qual manipulo a história, permite que as pessoas pensem diferente ou entendam diferente a nossa história compartilhada, então ele é bom.
JOHN FREEMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
JOHN FREEMAN é editor da revista “Freeman’s” e organizador da antologia “Tales of Two Cities” (Record).