Uma das propostas originais da reforma da Previdência era uniformizar os critérios de acesso à aposentadoria para homens e mulheres.
Essa estratégia, segundo seus defensores, seria uma forma de acabar com um privilégio das mulheres. Tal argumentação, no mínimo desinformada, parte de um pressuposto bastante criticável, implícito aos discursos que enaltecem a meritocracia: o de que não há diferenças relevantes entre os indivíduos.
(Folha de S.Paulo, 06/05/2017 – Acesse o site de origem)
De acordo com essa visão, homens e mulheres concorrem em pé de igualdade no mercado de trabalho. Não haveria sentido, portanto, em privilegiar um grupo em detrimento do outro.
Nessa perspectiva, tendo em vista a transformação do papel das mulheres nas últimas décadas -com maior liberdade, conquista de direitos e inserção no mercado de trabalho-, permitir que elas se aposentem mais cedo e com menor tempo de contribuição aparenta ser um privilégio de gênero.
O raciocínio, contudo, está equivocado. A Constituição Federal de 1988 levou à Previdência o princípio da solidariedade social, determinando o tratamento diferenciado de segmentos populacionais com condições desiguais de inserção no mercado de trabalho.
Quase 30 anos depois, esse princípio continua a fazer sentido no caso das mulheres. Estamos ainda muito longe de vivenciar uma situação real de igualdade de gênero no mercado de trabalho. Vejamos algumas estatísticas.
Em 2015, de acordo com a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), 91% das mulheres ocupadas declararam realizar tarefas domésticas e de cuidados, enquanto os homens nessa categoria eram 53%.
Isso significa que 91% das mulheres possuem ao menos dupla jornada: se inseriram no mercado, mas continuam, em grande parte, a desempenhar sozinhas as tarefas domésticas e de cuidados no âmbito de suas famílias -sejam como mães, avós ou filhas.
No entanto, “tarefas domésticas e de cuidados no âmbito de suas famílias” não remuneram, não contam para a aposentadoria e tampouco para o incremento da produtividade e do salário -muito pelo contrário.
Falando nisso, segundo dados da Relação Anual de Informações Sociais de 2015, cerca de 40% das mulheres ocupadas estavam vinculadas a atividades que são extensão das “tarefas domésticas e de cuidados no âmbito de suas famílias”, como educação infantil, serviços sociais e serviços domésticos.
Apesar da evidente importância, essas atividades são de baixa remuneração, altamente sujeitas à informalidade.
A desigualdade salarial ainda é alarmante. Segundo a Pnad 2015, mesmo em atividades que são extensão das “tarefas domésticas e de cuidados no âmbito de suas famílias”, as mulheres recebem, na média, cerca de 68% dos rendimentos dos homens.
E por que as mulheres, na média, ganham menos? Porque ainda permanecem condições estruturais, especialmente sociais e culturais, que restringem a sua participação, quantitativa e qualitativamente, no mercado de trabalho.
Assim, suplantar o princípio de solidariedade social da Previdência, tentando igualar a idade mínima de homens e mulheres, em nada reflete a desigualdade de gênero observada ainda em 2017.
E pior: pode contribuir para o seu aprofundamento.
FERNANDA GRAZIELLA CARDOSO, doutora em economia das instituições e do desenvolvimento pela USP, é professora de ciências econômicas da Universidade Federal do ABC