Elas são rejeitadas no mercado de trabalho, na TV, no cinema, na publicidade, em companhias aéreas. Sofrem preconceito até entre as minorias. Mas, depois de décadas na sombra, passaram a reagir com campanhas, passeatas, militância em redes sociais. Conversamos com algumas mulheres que, na luta contra a gordofobia, começaram a mudar a forma de se colocar na sociedade
(Marie Claire, 18/05/2017 – acesse no site de origem)
As luzes do palco acendem, a plateia lotada grita e uma garota sexy entra em cena, autoconfiante, em cima de plataformas de 12 centímetros. Vestida com minishort e top decotado, ouve do público, essencialmente feminino, palavras de incentivo, como “sua linda!” e “poderosa!”. Já os garotos assobiam, a fotografam e filmam. Ela acena, levanta os braços e brada: “Quem manda nessa porra sou eu!”. O público reage com palmas e mais gritos. Poderia ser a abertura de uma apresentação de Anitta, mas quem está no palco é outra funkeira, MC Carol, também conhecida como Bandida: 23 anos, 1,68 metro de altura e 140 quilos. Isso mesmo, 140 quilos, e autora de alguns hits como “100% Feminista”, que ficou famosa cantada por ela e Karol Conka. Obesa desde a infância, conta que era uma das poucas crianças negras e gordas em sala de aula, e isso lhe trazia enorme sofrimento. “Quando fiz 9 anos, disse à minha família que queria ser magra e branca igual ao Michael Jackson. Pensava: ‘Se ele conseguiu, por que também não posso?’.” O avô disparou: “Você não deve se incomodar com o que parece para os outros. A única coisa que importa é o amor que recebe da gente”.
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Essas palavras serviram como norte de vida. “O mundo não foi feito para os gordos. Mulher gorda não pode casar nem ter filhos ou sucesso profissional. Até sapatos preciso comprar na seção masculina, para caberem nos meus pés”, desabafa a MC, casada há quatro anos com Alexandre Oliveira, também gordo, que a acompanha nos shows. Diz que adora praticar esportes e faz questão de manter um lifestyle saudável. “Desde criança, faço capoeira, futebol, vôlei e até triatlo. Nunca fui magra, mas não me preocupo mais com isso. Aprendi a ser assim e sou saudável. Faço exames com frequência e controlo de perto a glicemia”, diz. “Não como exageradamente. Adoro arroz, feijão, frutas. Meu problema é a rotina de shows. Preciso prestar mais atenção aos horários das refeições.”
MC Carol aponta que o mercado plus size, assim como o índice de obesidade no país, só cresce. Segundo o IBGE, quase 60% dos brasileiros apresentam IMC igual ou maior do que 25 (sobrepeso ou obesidade). De acordo com dados da Associação Brasileira do Vestuário (Abravest), no ano passado o mercado para tamanhos grandes movimentou cerca de R$ 6 bilhões. “Faço parte de três grupos marginalizados: mulher, negra e gorda. As pessoas se incomodam muito mais com minha silhueta do que com qualquer outra coisa.”
Com as redes sociais e o aumento do debate sobre inclusão, a luta contra a gordofobia ganhou força. O projeto Empoderarte-me, da fotógrafa de Jundiaí (SP) Mariana Godoy, 24, reúne uma série de imagens de gordas nuas em poses sensuais, com frases de reafirmação pintadas em seus corpos, como “Gorda, sim”, “Gorda e saudável”, “Meu corpo, minhas regras” e “Tire a gordofobia do caminho que eu quero passar”. Sem retoques, a série de fotos ganhou um tumblr (http://empoderarteme.tumblr.com/) e centenas de compartilhamentos no Facebook. “Sempre fui gorda e, com o projeto, quis mostrar que a mulher fora dos padrões tem espaço, que também pode ser desejada”, conta. “Milito contra a gordofobia. Meu trabalho é uma provocação a ela. Nós somos mulheres e queremos nos sentir bem, felizes. Não é pedir muito”, explica a fotógrafa.
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Sua luta, assim como a de várias outras gordas, vale reforçar, não é contra o emagrecimento – como são acusadas nas redes. O que elas buscam é a aceitação do próprio corpo e o debate para a sociedade incluí-las independentemente do peso. “A discriminação está em todos os lugares. Só as magras têm o ‘direito’ de ser bonitas. O que queremos é apenas o mesmo tratamento, quer gostem, quer não.” É isso também que busca a ONG baiana Vai Ter Gorda, que realiza eventos como a Marcha das Gordas. “Lutamos por nossa visibilidade negada, pela voz silenciada. Nós, gordas, ainda procuramos existir como seres humanos”, diz o cartaz do encontro, que aconteceu em 8 de março, em Salvador.
Segundo a endocrinologista Cintia Macedo, da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade (Abeso), de 60% a 80% do peso de qualquer pessoa está ligado à genética, e não aos hábitos. “A obesidade é uma doença complexa de caráter crônico”, diz. “A principal queixa em meu consultório é que o paciente não aguenta mais ser gordo porque ninguém o respeita. Ele é visto como alguém sem caráter, sem ‘força de vontade’ para fazer dieta ou atividade física. Esse pensamento precisa mudar, é injusto.”
“A gordofobia da maneira que conhecemos hoje teve início no pós-guerra”, conta a historiadora Denise Bernuzzi de Sant’Anna, autora de Gordos, Magros e Obesos: Uma História de Peso no Brasil (editora Estação Liberdade, 184 págs., R$ 39). “Nos anos 50, a população passou a ter mais acesso à comida, com os industrializados em geral. O gordo deixou de ser considerado rico e poderoso, porque naquele momento todo mundo podia comer.”
Elas querem ser vistas
Ashley Graham, top model plus size que se tornou a Gisele Bündchen na luta contra a gordofobia, foi destaque na última Semana de Moda de Nova York, como principal modelo do desfile de Michael Kors. Outro destaque da categoria, a australiana Robyn Lawley foi capa da Marie Claire de seu país. Por aqui, já há até um Miss Brasil Plus Size, lançado em 2012, mesmo ano em que a jornalista Flávia Durante, 40 anos, lançou o Pop Plus Size. A fim de se sentir incluída no mercado de moda, um dos mais excludentes – poucas marcas têm grade maior do que 44 –, Flávia criou o bazar. Partindo de seis expositores na primeira edição, o evento abrigou 60 este ano. Ainda incluiu uma pool party só de gordas para dar visibilidade à causa. E nada de maiô: a maioria delas vestia biquíni e fio dental, como a própria Flávia. “Muitas de nós sentem vergonha. Quero mostrar para elas que isso é bobagem. Vou à praia assim mesmo, não estou nem aí!”
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Algumas empresas passaram a escolher gordas para protagonizar suas campanhas. Flávia Durante filmou de biquíni para uma marca de energético. Boa notícia, não fossem os haters que vieram junto com a popularidade. “Vários me mandaram mensagens com coisas horrorosas, do tipo: ‘Você está à beira da morte. Não vai ter caixão em que caiba’. Caí de cama e chorei muito, fiquei realmente doente. Não acessei as redes até a campanha sair do ar. Foi traumático”, explica Flávia, que chegou a pensar em publicar exames que confirmem que ela é saudável. “Me senti nos anos 90, quando artistas vinham a público para mostrar que não tinham aids. Mas mudei de ideia: mereço respeito, não devo satisfação a ninguém.”
Na internet, meio em que os haters se proliferam como pragas, os gordos são alvo. “As falsas promessas de emagrecimento rápido colaboram para o preconceito, pois as pessoas acham que é fácil perder peso, quando não é”, explica Adriano Segal, diretor de psiquiatria da Abeso.
Tanto que a professora de ioga Vanessa Joda, 37 anos, começou a fazer dietas mirabolantes com o sonho de se tornar modelo. “Na primeira, aos 12, cortei o açúcar. Aos 18, almoçava e jantava cenoura crua com suco de melancia”, conta. “Na hora funcionava, mas depois engordava mais. Aos 15, reduzi as mamas porque um booker me convenceu. Viciei-me em anfetaminas. Fiz seis lipos e muitos outros procedimentos agressivos para ser magra.” Não deu certo. A carreira de modelo nunca decolou. Frustrada e infeliz, Vanessa teve síndrome do pânico. O psiquiatra a aconselhou a fazer ioga. E a prática mudou sua vida. “A ioga te dá consciência corporal, o intuito não é emagrecer.” Há oito meses, abandonou a carreira de gerente de comércio exterior para dar aulas no projeto Ioga para Todos. Ao deixar o vício da medicação para emagrecer e esquemas alimentares com baixíssimo teor calórico, voltou a engordar. “Foi muito difícil assumir meu peso real, mas, depois que você vê a morte na sua frente, desiste dessas loucuras.”
Hoje com 110 quilos e 1,60 metro, seu propósito é fazer as mulheres se aceitarem. “É quebrar o estereótipo do praticante ‘clássico’. Tem de tudo nas minhas classes: magro, gordo, jovem, velho…” Longe de se encaixar em padrões, Vanessa conta que nunca foi tão feliz. Se ela pode, todas nós podemos.
Por Lu Angelo