Após decodificar 110 genomas do vírus zika a partir de amostras de pacientes e mosquitos de dez países e territórios das Américas, pesquisadores apontam que o microrganismo circulou por meses sem ser detectado em diversos locais do continente. Divulgado na revista Nature o estudo apresenta o maior banco de sequências genéticas do patógeno já publicado. A análise desse conjunto, juntamente com outros 64 genomas disponíveis na literatura científica, indica que o zika desembarcou no Brasil entre agosto de 2013 e julho de 2014, sendo o período mais provável em fevereiro. Ou seja, cerca de um ano antes de os primeiros casos serem identificados, em abril de 2015. A partir do país, o vírus se espalhou pelas Américas, e o padrão se repetiu: mesmo com a chegada do agravo ao continente confirmada no Brasil, o zika passou despercebido por 4,5 a 9 meses em países como Porto Rico, Colômbia, Honduras e na região do Caribe, incluindo República Dominicana, Jamaica e Haiti.
(Fiocruz, 25/05/2017 – Acesse o site de origem)
O estudo foi coordenado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em parceria com o Instituto Broad, ligado ao Instituto de Tecnologia de Massachussets (MIT) e à Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, e outras instituições de pesquisa nacionais e internacionais. No Brasil, a colaboração envolveu o Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde da Fiocruz (CDTS), Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz), Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR). O trabalho contou com apoio Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).
A publicação na revista Nature ocorre simultaneamente com outros dois trabalhos que investigam a genética do zika. Juntas, as três pesquisas apresentam cerca de 200 genomas em circulação nas Américas, ampliando significativamente o conhecimento sobre como o surto da doença se espalhou. “Até agora, tínhamos pouca informação sobre a diversidade genética do vírus que circulou durante a emergência de saúde pública. Os novos dados permitem compreender o padrão temporal e geográfico de disseminação do zika e apontam questões importantes para o monitoramento da doença no futuro”, afirma Thiago Moreno L. Souza, pesquisador do CDTS e um dos autores do estudo. “A percepção de que o zika circulou durante meses em diversos países sem ser identificado traz questões importantes sobre a capacidade de detecção precoce de doenças emergentes. Esse resultado reforça a importância da vigilância epidemiológica ativa acoplada a técnicas moleculares de diagnóstico e sequenciamento genético, de forma que situações como essa sejam percebidas antes de levarem a epidemias”, completa Fernando Bozza, pesquisador do INI/Fiocruz e do ID’Or, também autor do trabalho.
Os autores ressaltam ainda que a colaboração científica foi fundamental para os resultados alcançados. “Esse trabalho confirma a capacidade de cooperação nacional e internacional da ciência brasileira e mostra que as redes colaborativas de pesquisa têm a capacidade de trazer uma visão mais abrangente para os estudos científicos”, ressalta Patrícia Bozza, chefe do Laboratório de Imunofarmacologia do IOC/Fiocruz, também autora da pesquisa.
Barreira superada
A dificuldade para realizar o sequenciamento genético do zika a partir de amostras de sangue ou urina de pacientes é um dos principais motivos para o baixo volume de genomas decodificados anteriormente. Diferentemente de outros vírus, como o ebola ou o dengue, o zika circula em baixos níveis no organismo e por um curto período de tempo. Diante da pequena quantidade de partículas virais presentes nas amostras, os pesquisadores utilizaram técnicas recentes que permitem amplificar o material genético mesmo nas condições adversas para a análise apresentadas no caso do zika. Dessa forma, foi possível realizar o sequenciamento dos genomas em 110 das 229 amostras analisadas. A abordagem permitiu ainda dispensar a etapa de isolamento viral, feita por meio da incubação em culturas de células – procedimento que consiste em colocar as amostras contendo o vírus em contato com células, para que estas sejam infectadas e o microrganismo se replique. “Quando o vírus se replica em cultura de células, ele pode sofrer mutações. Por isso, o sequenciamento do genoma diretamente a partir de amostras clínicas é um fator importante, que traz resultados mais fidedignos”, ressalta o pesquisador Wim Degrave, do Laboratório de Genômica Funcional e Bioinformática do IOC, que participou do estudo.
Comparando os genomas dos microrganismos, os pesquisadores identificaram mutações sofridas pelo Zika no percurso durante a disseminação nas Américas, o que permitiu reconstruir o histórico do surto. Com base nas semelhanças e diferenças entre as sequências genéticas, os cientistas montaram a árvore filogenética dos microrganismos – similar a uma árvore genealógica. Nessa estrutura, os vírus do Brasil aparecem mais próximos da raiz da árvore, indicando que o país é a origem do surto no continente. Segundo a análise filogenética, Colômbia, Honduras e Caribe foram rotas de espalhamento do vírus. Nos Estados Unidos, o Zika aparece a partir de múltiplas entradas oriundas do Caribe.
Alerta para o futuro
Além de mapear o passado, a análise da variação genética do zika traz informações importantes para o monitoramento futuro da doença. Ao todo, os pesquisadores identificaram cerca de mil variações, sendo aproximadamente 200 chamadas de mutações não sinônimas, ou seja, que causam mudanças nas proteínas do vírus. Embora o possível impacto dessas alterações sobre as funções virais ainda tenha que ser investigado, o estudo alerta sobre a necessidade do monitoramento contínuo para preservar a eficácia dos métodos moleculares de diagnóstico da doença. Para o diagnóstico molecular, baseado na detecção do material genético do vírus em uma amostra, são utilizadas pequenas sequências de nucleotídeos – conhecidas como iniciadores ou sondas – que se ligam a segmentos específicos do genoma do zika. É esse ‘encaixe’ bem-sucedido que permite identificar a presença do patógeno. “Na pesquisa, observamos que alguns desses segmentos já acumulam mutações. Esse processo ainda não prejudica completamente o desempenho dos métodos de diagnóstico, mas é fundamental que isso seja acompanhado para que adaptações sejam feitas quando necessário”, comentou o virologista Edson Delatorre, pós-doutorando do Laboratório de Aids e Imunologia Molecular do IOC, que também participou do trabalho.
Considerando os resultados da pesquisa, os autores destacam ainda o potencial das ferramentas de análise genética para melhorar a resposta dos países diante de doenças emergentes. “A genômica nos permitiu reconstruir como o vírus viajou e mudou através da epidemia – o que também significa que poderia ter ajudado a detectá-lo muito mais cedo. Estávamos muito atrasados em relação ao zika.
Precisamos estar bem à frente da próxima ameaça viral emergente, e a genômica pode ter um papel nisso”, comentou a pesquisadora Bronwyn MacInnis, do Programa de Doenças Infecciosas e Microbioma do Instituto Broad. Em um texto de análise publicado na seção News and Views da revista Nature, o pesquisador Michael Worobey, da Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, avalia que os três trabalhos recém-publicados estabelecem um novo padrão para o que pode ser alcançado através do estudo de surtos de doenças a partir de sequências genéticas rapidamente obtidas e analisadas em um poderoso quadro computacional. No comentário sobre os estudos, o cientista – que não esteve envolvido nas pesquisas – prevê que a próxima etapa será levar esse tipo de abordagem às ações de rotina para a identificação precoce de novas ameaças. “Essa abordagem pode ser construída a partir das técnicas aplicadas nos estudos recém-publicados. Qualquer ilusão de que isso seria proibitivamente caro deve ser dissipada pela certeza de futuros surtos terão preços de bilhões ou trilhões de dólares e causarão um sofrimento humano inaceitável”, afirmou.