Isabella Souza Barros, 20, e Jasmine Rondine, 20, deixaram suas famílias por motivos semelhantes: foram vítimas de violência e chamadas de “aberração” pelos pais devido à tentativa de viverem em casa livremente com suas orientações sexuais.
(Folha de S.Paulo, 17/06/2017 – acesse no site de origem)
Elas foram expulsas, vagaram pelas ruas, mas acabaram encontrando apoio e abrigo em uma iniciativa de acolhimento que começa a fazer sucesso em São Paulo, a Casa 1, que acolhe o público LGBT em vulnerabilidade.
Mantido basicamente com financiamentos coletivos virtuais, o local tem capacidade para abrigar até 20 pessoas e é também um centro cultural, com oficinas diversas, aulas de língua estrangeira, encaminhamento ao mercado de trabalho, além de oferecer apoio médico e psicológico.
Em seis meses de existência, a Casa 1 conseguiu reaproximar abrigados de suas famílias e restabelecer a autoestima de usuários, o que tem chamado a atenção de marcas que começam a pôr recursos financeiros na obra social.
“Aqui encontrei afeto, apoio, fraternidade, restabeleci minha saúde e tive ajuda para conseguir ser quem eu quero ser. Agora pretendo estudar ciências sociais ou serviço social”, diz Jasmine, que é lésbica e está desde março passado na casa.
O período de permanência estabelecido é de 90 dias, que pode ser estendido conforme a realidade de cada pessoa, que não paga pela permanência, que envolve ainda cuidados médicos e alimentação.
Isabella, que é transexual feminina, passa pela segunda vez pelo espaço, e guarda mágoas do pai –que ela não pretende mais ver.
“Meu pai chegou a me dar facadas, me humilhou, tratou como bicho. Não quero mais contato. Meu objetivo agora é trabalhar com estética, com beleza. O pessoal da casa está me ajudando e já começaram a aparecer oportunidades. Quero outra vida.”
Para Iran Giusti, idealizador do local, “a vivência e a experiência de outros espaços de acolhida” têm guiado os trabalhos da Casa 1.
“Oferecer perspectiva para os residentes é um dos nossos maiores objetivos. Acabamos de fechar uma parceria para dar formação continuada para mulheres trans. Mas a manutenção de tudo só é possível com a ajuda de voluntários e de doações”, diz.
Ser refúgio contra violência e preconceito também é premissa da organização, que abre sete dias por semana.
“O poder público acha que violência contra LGBTs só acontece em horário comercial, que é quando funciona a delegacia especializada, o serviço social. Por isso, estamos abertos das 10h às 22h, todos os dias, oferecendo apoio e atividades como dança, canto, inglês, teatro, cursinho preparativos para o Enem”, afirma Giusti.
Marcel Borges, 26, que é transexual masculino, vive uma história de gratidão com o abrigo, por onde passou no início deste ano, e prepare-se para se torna voluntário do local. Estudante de pedagogia, ele já retomou o diálogo com os pais e sente-se mais encorajado e preparado para encarar sua realidade.
“Trabalho e estudo, o que me faz uma exceção entre as pessoas trans, que ainda são, em sua maioria, marginalizadas. Então, preciso ajudar, pois fui ajudado no restabelecimento do diálogo com meus pais. Ainda estou trabalhando o entendimento deles com minha identidade.”
FUTURO
Para o próximo ano, a Casa 1 já tem garantidos recursos para sua manutenção básica. A cervejaria que produz a Skol vai bancar o aluguel do local, no bairro da Bela Vista (centro), e repassar também um valor das vendas geradas de uma edição especial da cerveja que será vendida na Parada do Orgulho LGBT.
“Algumas marcas começaram a entender que precisam se comunicar com todos os públicos e que não basta apenas explorar a imagem desses públicos, apropriar-se de suas demandas. O que vai fazer a diferença é ajudar em questões estruturais, não em medidas efêmeras de propaganda”, declara Giusti.
Segundo Marcel Borges, avanços em relação à discussão de identidade de gênero começaram e têm apoios de algumas organizações, mas o caminho ainda é longo.
“A comunidade LGBT tenta se firmar, mas a briga ainda é enorme. Não conseguimos discutir as questões na escola e temos ainda o enfrentamento político com a bancada BBB, que defende bíblia, boi e bala”, afirma.
Professor voluntário de inglês e coordenador do núcleo de línguas estrangeiras na Casa 1, Paolo Capistrano, que trabalha há 13 anos em escolas de idiomas, avalia que sua colaboração é fornecer mais uma ferramenta de inclusão.
“No Brasil, 90% da população trans trabalha em empregos informais, como a prostituição. Então criei um projeto para levar curso de inglês a essas pessoas que desse a elas um nível de independência no idioma e mais oportunidades”, afirma.
Jairo Marques