“Cheguei logo no segundo dia para construir minha casa. Parecia um formigueiro, gente marcando território com o que podia. O tempo passava e todos começaram a ficar desesperados com a pressão para desistirmos. Daí tive a ideia: ‘Vou fazer uma assembleia. Precisamos nos organizar’.”
(BBC Brasil, 16/06/2017 – acesse a íntegra no site de origem)
A lembrança da primeira reunião dos moradores da ocupação Izidora ainda é forte na memória de Edna Souza, de 49 anos. Ao decidir fincar o pé com filho e marido naquela região isolada no norte de Belo Horizonte, motivada pelo desejo de se livrar do aluguel, ela não imaginava que se tornaria referência para milhares de pessoas na mesma situação.
Hoje, Edna atua ao lado de outras quatro mulheres na coordenação da ocupação, cenário de um dos maiores conflitos fundiários em área urbana do Brasil. “Aqui sou um pouco mãe, prefeita, médica, psicóloga. Não existe descanso até o dia em que a Izidora for urbanizada”, afirma.
As primeiras pessoas chegaram ao local em junho de 2013. O terreno de morros e vegetação rasteira, a cerca de 18 km do centro da cidade, se espalha por uma área equivalente a 1,3 mil campos de futebol – pela dimensão, foi dividido em três vilas (Esperança, Rosa Leão e Vitória) logo no início.
Hoje, segundo levantamento da PUC-MG, abriga 30 mil pessoas em 8 mil casas, em quase quatro anos de disputa judicial pelo terreno.
Reintegração de posse
A batalha judicial entre os moradores da ocupação e a Granja Werneck, dona do terreno, tem rendido muitos desdobramentos ao longo do tempo.
Em 2013 a Granja Werneck entrou com um pedido de restabelecimento da posse do terreno, juntamente com a prefeitura de Belo Horizonte, como parte de um projeto de construção de 8 mil habitações do Minha Casa, Minha Vida.
O convênio para construção, afirma Otávio Werneck, um dos proprietários, foi fechado no mesmo ano, antes de as primeiras famílias ocuparem o local. “O projeto é para atender 40 mil pessoas. Número muito superior ao que vive atualmente lá”, diz.
Ele afirma que os donos do terreno já pensavam em uma destinação social para a área desde os anos 1990, mas houve demora nos acertos com a prefeitura e em liberações ambientais.
“Quando começamos a divulgar para colocar (o projeto) em prática, em 2013, começou também a ocupação”, afirma.
Em 2015, a Justiça mineira chegou a autorizar o despejo das famílias, mas a decisão foi suspensa pelo Superior Tribunal de Justiça.
No ano passado, a ocupação entrou na pauta da campanha eleitoral municipal. O atual prefeito, Alexandre Kalil (PHS), visitou a região na campanha e prometeu que evitaria o despejo das famílias.
“Sei que ali existem problemas graves, até mesmo de especulação. Mas a Izidora já é um bairro consolidado. O que eles vivem ali é um verdadeiro terrorismo com essa ameaça de despejo”, disse o prefeito à BBC Brasil logo após a vitória no segundo turno.
Em março, a prefeitura desistiu formalmente de uma das ações relacionadas à Izidora, o que não impede o ingresso de novas ações de reintegração no futuro. Na mesma época, o governo do Estado apresentou uma proposta pela permanência das vilas Rosa Leão e Esperança, com a condição de que parte da vila Vitória fosse despejada – os moradores rejeitaram a oferta.
No ano passado, o Tribunal Internacional dos Despejos, órgão que produz e envia recomendações à ONU e a governos sobre conflitos por moradia, elegeu o caso como um dos sete mais significativos do mundo.
Rose
Edna já perdeu as contas de quantas assembleias fez no local. “O primeiro passo foi conhecer nossos direitos, com ajuda de movimentos sociais. Imagine conscientizar milhares de pessoas sobre isso?”, questiona.
Toda terça-feira, Edna se junta à diarista Rose Freitas, de 33 anos, em reuniões com moradores da vila Esperança.
“Soltamos foguete, batemos sino e gritamos de porta em porta para chamar o pessoal. A participação é importante demais, e por isso chegamos até aqui”, diz Rose, para quem a ocupação simbolizou um recomeço.
Após ter um filho de 15 anos assassinado, ela deixou o bairro em que vivia na zona oeste de BH com os outros dois filhos, em meio a uma depressão. Desempregada, não tinha como pagar contas e soube da ocupação por amigos.
“Conversei com o pessoal que já estava construindo e consegui um lote”, relembra, ao mostrar sua casa de quatro cômodos, erguida com ajuda de amigos. Nos últimos três anos, ela já trouxe a mãe e uma das irmãs para a Izidora. “Hoje, mesmo vivendo com medo de despejo, digo que estou na época mais feliz da minha vida.”
Sem trabalho fixo, Rose vive do Bolsa Família, do trabalho como diarista e de uma pensão para o filho caçula – renda total de cerca de R$ 1,2 mil mensais. Nos dias em que não trabalha, passa o dia com Edna no centro comunitário da vila, atualizando o cadastro de moradores, organizando a pauta de reuniões semanais e analisando as diferentes demandas da ocupação.
Charlene
A maioria dos moradores diz ter chegado até ali por falta de alternativas. Ao caminhar pelas ruas estreitas da vila Rosa Leão, Charlene Egídio, de 33 anos, quase sempre é parada por alguém em busca de ajuda.
“Outro dia chegou uma menina de 15 anos com filho no colo. Ela tinha acabado de perder o marido, assassinado, e não tinha para onde ir. Procuramos ajuda, a vizinhança levantou o barraco dela e agora estamos atrás de cesta básica e leite em pó para o menino”, conta.
Charlene se lembra do dia em que Edna a procurou para organizar a primeira assembleia da Izidora, e reconhece a capacidade de diálogo das coordenadoras. “É muita gente morando aqui. Se não tivermos lideranças internas que sejam porta-vozes dessas pessoas, nossa luta não flui”, afirma.
Viver em ocupações urbanas é algo familiar para Charlene. “Meus parentes ocupam lotes sem função social há 20 anos. Não tinha condição de seguir minha vida pagando aluguel sozinha no final do mês. Vim com tudo, simplesmente porque não tinha outra opção”, relembra.
Por quatro anos, Charlene se dedicou de forma exclusiva à coordenação da vila Rosa Leão, onde vive com o filho numa casa construída por amigos. “Meu sustento vinha de doações”, relembra. A convivência com movimentos sociais acabou lhe rendendo um convite para atuar no gabinete de duas vereadoras do PSOL na capital mineira, onde ganha um salário de R$ 2,6 mil.
“Minha experiência como liderança abriu portas para essa chance de atuar por toda a cidade. Sou mulher preta, periférica e sem nível universitário ali dentro, representando os meus. Minha faculdade foi a experiência”, diz.
Laura de Las Casas e Gabriel Sales