Em pleno século XXI, discussões e mesas-redondas no Brasil ainda privilegiam a voz masculina branca. Nós, mulheres, não aceitaremos mais tal exclusão
(CartaCapital, 14/06/2017 – acesse no site de origem)
Entre tantas aulas para preparar, provas para corrigir e boletos para pagar, sinto-me desgastada em ter que contar quantas mulheres integram debates intelectuais, como publicações e mesas-redondas.
Em pleno século XXI, é desconcertante se deparar com tantos all-male-panels (expressão em inglês para se referir a painéis só de homens [brancos]), e não é raro que isso ocorra na própria esquerda. Enquanto a vida deveria seguir seu curso normal, temos que a dar um passar atrás, contar, denunciar e ouvir as sempre as mesmas desculpas.
“Somos preocupados com a questão de gênero. Convidamos as mulheres X, Y, Z, mas eles não puderam comparecer”. Essa foi a resposta eu recebi na semana passada de seis organizadores de diferentes debates.
Pergunto-me quantas mulheres essas pessoas consideram referências.
Na mesma linha, recentemente, assisti a um debate de cunho político sobre um tema que atingia crucialmente a vida das pessoas de baixa renda. Só tinham pessoas brancas discutindo. A resposta dos organizadores foi que “tinha uma mulher negra, mas ela perdeu o voo. Uma pena”.
Uma pena, na verdade, é que as pessoas não trabalhem previamente para evitar essa situação, que é inadmissível.
Não é uma coincidência o fato de eu ter escutado a mesma frase de tantos organizadores de grandes debates da esquerda brasileira, pois o problema reside justamente no minguado repertório de mulheres que os homens possuem. A diversidade não pode ser simplesmente uma estratégia com o propósito de “não fazer feio e não arrumar encrenca”.
Enquanto os espaços intelectuais não forem concebidos desde a sua raiz de forma abrangente e democrática, a chance de se ter um resultado final apenas com homens brancos “porque as mulheres estavam gripadas ou perderam o voo” será sempre altíssima.
Chegar a um produto final só homens brancos é degradante, mas os problemas não se encaram por aí. Muitos organizadores, quando confrontados com críticas tendem a reagir de forma retrógrada: “chega dessas pautas identitárias que segregam a esquerda” – dizem aqueles que, de fato, segregam a esquerda e nos obrigam a brigar pelo óbvio.
Outros, menos reativos, saem correndo atrás da “cota”, como se nós fôssemos alegoria de mesa-redonda: “tens uma mulher para em indicar para este tema?”. Nesse último caso, ao menos espera-se que uma lição tenha sido aprendida.
Em algum momento, os homens precisarão entender que as mulheres não aceitam mais serem excluídas de debates sobre os quais têm tanto a dizer. E se nossos nomes não são incluídos em debates, nós iremos cada vez mais apontar o dedo na ferida. E não deixaremos passar uma única oportunidade sequer.
Pensado em como reverter esse quadro, alguns pontos me parecem centrais.
Primeiro, é preciso se acostumar a contar. Sempre, a cada anúncio de debate, mesa ou publicação.
Segundo, é fundamental apontar o problema. Dar visibilidade à questão.Por isso, ressalto a importância de todas as mulheres denunciarem sempre que se deparar com debates cujos integrantes sejam apenas homens brancos.
Digo de experiência própria: fortalecer outras mulheres é muito mais relevante do que uma eventual represália sofrida pelos homens.
Ademais, homens com capacidade crítica reflexiva geralmente reconhecem o erro.
Terceiro, nós precisamos organizar nossos próprios debates. Muito já tem sido feito, mas ainda tem muito a fazer, especialmente quando se refere a temas considerados “masculinos”.
Organizadores de debates precisam ter em mente a premissa básica de que o produto final não pode ser a cara da exclusão brasileira. É inadmissível e ponto final.
Se isso estiver interiorizado, os debates não ocorrem até que se tenha uma composição minimamente justa. Isso pode envolver algum trabalho, mas é um trabalho positivo que requer que a gente se abra, busque novos nomes e expanda nossas referências.
Historicamente, os homens brancos pensaram a política e a esquerda. As palavras “políticas” e “intelectuais” evocam figuras masculinas para a maioria das pessoas. Mudar esse estado da mente é um exercício que toca no âmago de nossas imagens mais arraigadas, construídas desde muito cedo (pesquisas provam que as crianças passam a considerar a palavra “brilhante” um atributo masculino aos seis anos de idade).
Nós precisamos mudar o quadro do brilhantismo e incluir referencias femininas em nossas vidas políticas, profissionais e intelectuais, no intuito de subverter o inconsciente repleto de Che Guevaras e Michel Foucaults.
Um ótimo exemplo de como essas imagens funcionam em nossa mente reside na entrevista do ex-prefeito petista, Fernando Haddad, que mencionou suas referências intelectuais na “nata uspiana”. Ele citou oito homens brancos e nenhuma mulher – entre tantas que o formaram. Também, no mesmo dia, li uma resposta crítica de outro uspiano à entrevista de Haddad.
Ele citou mais oito homens que considerava a “nata uspiana”. Foram, no total, dezesseis intelectuais homens citados em uma universidade que, nem de longe, carece de mulheres brilhantes, destacadas e internacionalizadas.
Passei os últimos cinco anos de minha vida trabalhando fora do país em departamentos com ampla maioria não-branca. Eu nunca precisei apontar questões de diversidade antes. Parece óbvio, mas não tem sido óbvio. Apontar essas bizarrices no meu próprio país têm me custado caro. Eu arrumo confusão? Eu sou encrenqueira? Linchadora? Esses são rótulos que nós mulheres não aceitaremos mais. Afinal, quem encrenca é quem segrega. Até onde eu me lembre, “vândalos” são aqueles que oprimem.
É triste que tudo isso ocorra no campo progressista. Mesmo que muita gente brinque que “nada mais parecido com um machista de direita do que um machista de esquerda”, nós sabemos que – por princípios de justiça, igualdade e humanidade – deveria haver uma diferença ética importante aí. Mas nem sempre ou raramente há. O poder trabalha para reproduzir o poder – à esquerda ou à direita.
Tem sido duro enfrentar uma parte da esquerda tão violenta simbolicamente – mas tão brega também: fechada, presa em circuitos específicos de poder, autorreferenciada e apaixonada por si própria.
Quando nós reclamamos, nós não estamos “arrumando encrenca”, nós estamos arrumando a encrenca que foi feito por outros, colocando nosso nome na lista da festa democrática para a qual não fomos convidas.
O machismo é subdesenvolvido. A resistência é cosmopolita.
Estamos atuando para trazer níveis de desenvolvimento humano mínimos para o campo progressista e para o país de modo geral.
Não há esquerda que mude o mundo sem que ela não seja capaz de melhorar a si própria.
Rosana Pinheiro-Machado é cientista social e antropóloga. Professora do departamento de Desenvolvimento Internacional da Universidade de Oxford