Instituições de ensino protegem agressores e desvalorizam relatos das vítimas, segundo especialista da Rede Feminista de Juristas
(Nexo, 23/07/2017 – acesse no site de origem)
Em 2014, uma estudante da Universidade de Columbia, nos EUA, iniciou um protesto silencioso no qual carregava, sempre que andava pelo campus, um colchão de cerca de 25 quilos. A ação era uma resposta à forma, considerada insuficiente, como a instituição vinha lidando com a denúncia de estupro feita por ela contra um colega. O protesto de Emma Sulkowicz durou um ano. Ela levou seu colchão até para sua cerimônia de formatura, em maio de 2015.
Sulkowicz se tornou conhecida, ganhou manchetes e empatia de outros estudantes. O caso é emblemático em meio a uma série de denúncias de violência sexual nas universidades americanas de maior prestígio – entre elas Berkeley, Stanford, além da própria Columbia – que vieram a público nos últimos anos.
O acusado de estupro, o estudante Paul Nungesser foi inocentado por uma comissão disciplinar de Columbia. Ele ainda processou a universidade, dizendo se sentir ora perseguido, ora ostracizado. Argumentou que a instituição de ensino endossou a acusação de Sulkowicz ao aceitar que ela obtivesse seu diploma de artes tendo como trabalho de conclusão de curso a “performance do colchão”.
Universidade e aluno entraram em um acordo no fim da segunda semana de julho. Em nota, Columbia disse que “reconhece que, depois da conclusão da investigação, o tempo restante de Paul na universidade se tornou muito difícil para ele e isso não é o que [a universidade] desejaria para nenhum de seus alunos”.
A violência sexual no ambiente universitário não é um problema exclusivamente americano. E o enfrentamento dessa violência é pouco eficaz também no Brasil, na avaliação da advogada e cofundadora da Rede Feminista de Juristas, Marina Ganzarolli. Ele envolve conscientizar os alunos sobre o tema, acolher as vítimas de forma adequada, apurar a acusação e, se for o caso, punir o agressor.
Violência sexual no meio universitário brasileiro
No mesmo ano em que a estudante de Columbia começou a chamar atenção para o problema da violência sexual no campus com seu colchão, em 2014, foi instaurada uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) na Assembleia Legislativa de São Paulo para investigar violações de direitos humanos nas universidades estaduais de São Paulo.
O objetivo da “CPI do Trote”, como ficou conhecida, era investigar relatos de homofobia, machismo, racismo e violência nos trotes e também duas acusações de estudantes da FMUSP, a Faculdade de Medicina da USP que denunciaram, em audiências públicas, terem sido estupradas por colegas em festas.
As investigações resultaram em dez denúncias formais de estupro. Seis delas dizem respeito à FMUSP . Dos dez casos, três resultaram em sindicância na universidade. O único aluno suspenso por decorrência da investigação foi Daniel Tarciso da Silva Cardoso, acusado de pelo menos seis casos de violência sexual por alunas e pelo Ministério Público de São Paulo pelo estupro de uma delas, estudante de enfermagem.
A suspensão de Cardoso chegou ao fim em setembro de 2016, permitindo que ele concluísse o curso de Medicina. Em fevereiro de 2017, ele foi também absolvido pela Justiça, e obteve seu registro médico em junho, pelo estado de Pernambuco. Cardoso não deu entrevistas e o processo permanece em sigilo, o que impossibilita ter acesso a sua versão.
Quais são as causas da impunidade
Em entrevista ao Nexo, a advogada e cofundadora da Rede Feminista de Juristas, Marina Ganzarolli, afirma que a impunidade dos crimes de violência sexual cometidos no contexto universitário é um reflexo da impunidade que cerca a violência sexual de maneira geral.
“Na verdade, [a impunidade] não persiste só na universidade, persiste no mundo e no sistema de justiça. A universidade não está em Marte, ela simplesmente reflete a falta de respostas eficazes para o enfrentamento da violência, principalmente da violência sexual”, disse Ganzarolli. “Hoje a gente tem instrumentos legais excelentes para o enfrentamento da violência. Mas elas não são eficazes, porque há barreiras institucionais que são produto de uma barreira cultural”.
Segundo a advogada, no entanto, essas barreiras ficam mais evidentes na estrutura da universidade, “precisamente porque ela é extremamente hierarquizada e burocratizada”.
“[A violência] fica muito evidente no meio universitário porque ele dispõe de mecanismos internos de visibilização, diferentemente, por exemplo, de empresas, que não têm coletivos feministas que dão apoio psicológico para que a vítima faça a denúncia. Talvez se a gente tivesse uma outra configuração em outras instituições, isso também seria mais visível”.
Ganzarolli elencou as principais barreiras no enfrentamento desse tipo de violência.
Raízes da impunidade
DESIGUALDADE DE GÊNERO
“Estamos falando de uma violência que é fruto de uma desigualdade de poder estruturante, material e que permeia todas as esferas da vida das mulheres [em relação aos homens], inclusive na universidade, que é uma delas. A violência é só a pontinha do iceberg, ela é a parcela visível dessa desigualdade de poder”.
POUCAS PUNIÇÕES
“A gente vê uma mudança do debate na esfera pública em relação a esse tipo de violência. Isso é muito positivo, porque incentiva as mulheres vítimas a denunciarem, mas ainda não se vê o reflexo dessa transformação que a gente tem acompanhado nos últimos anos no Brasil no sistema de justiça. Precisamente porque há uma barreira estrutural, um problema cultural”.
NATUREZA PRIVADA DA VIOLÊNCIA
Segundo a advogada, o cenário dos elementos de prova na grande maioria dos casos de violência sexual é contar apenas com o depoimento do agressor e o depoimento da vítima, pelo fato de que a maioria desses crimes acontece entre quatro paredes. Apenas uma minoria dos casos de estupro deixa vestígios, lesões aparentes. Na maioria dos casos, não é possível concluir, com uma análise ginecológica da vítima, que houve violência.
DESVALORIZAÇÃO DA VÍTIMA
O depoimento das vítimas é constantemente posto em dúvida seja na delegacia ou nas instâncias universitárias. “Qualquer inconsistência nos depoimentos das vítimas, que deveriam ser consideradas naturais, resultado normal do stress pós traumático de uma violência como essa, é utilizada para depreciar e desmoralizar o depoimento da vítima, enquanto o depoimento do agressor é tomado sempre como verdade”, diz Ganzarolli. O resultado são as raríssimas condenações por estupro no Brasil.
A AVALIAÇÃO DE RISCO DAS UNIVERSIDADES
Ao lidar com uma denúncia de violência sexual, as universidades brasileiras consideram que, caso o acusado não seja condenado na esfera penal (o que é o mais provável), há grandes chances de que ele queira processar a instituição, disse Ganzarolli. “Eles fazem uma projeção do quanto isso vai custar do ponto de vista do ônus jurídico, financeiro e midiático”.
Esfera judiciária e administrativa: o que cabe a cada uma
A esfera administrativa (da universidade) e penal (da lei) são independentes. Ainda que o agressor não seja processado ou condenado, a comissão investigativa da universidade pode aplicar pena administrativa, como suspensão ou expulsão.
“A esfera administrativa não tem a mesma rigidez [que a penal], inclusive, ela tem maior facilidade em coletar provas, em entender o contexto, saber se o agressor é reincidente, porque está ‘mais próxima da realidade’”, diz Ganzarolli.
“Se a universidade tem um microscópio roubado por um funcionário, ela não aguarda a conclusão de um processo penal de furto, que pode transitar por dez anos, para pedir o reembolso desse valor ao servidor. Então o que faz a universidade pensar que ela tem que esperar a condenação – em um tipo de crime em que quase não há condenação – para dar uma pena administrativa a um agressor?”, questiona.
A advogada diz que a preocupação em não lesar o acusado é maior, nesses casos, à que é aplicada à saúde mental da vítima e a sua permanência na universidade. “No dia seguinte à agressão, a vítima continua convivendo com seu agressor no ambiente acadêmico. Quais as consequências mentais, psicológicas e também acadêmicas para ela?”, diz.
Medidas das universidades brasileiras
A USP tem hoje um órgão cujo objetivo é a igualdade de gênero no ambiente universitário, a promoção da produção científica de mulheres e o combate à violência, o USP Mulheres. Em 2015, foi criada também a Rede Não Cala, uma “rede de Professoras e Pesquisadoras pelo Fim da Violência Sexual e de Gênero na USP”, que dá suporte e assistência a vítimas de violência.
Na Medicina, foi criada em 2015 uma ouvidoria para receber “denúncias, críticas e queixas” de alunos, funcionários, professores e outros e o NAEE, Núcleo de Acolhimento e Escuta que pretende, segundo a faculdade, “dar apoio e orientação aos alunos dos cursos de graduação e residência médica, vítimas de violência ou em situação de vulnerabilidade”.
Na avaliação de Marina Ganzarolli, que chegou a prestar assistência jurídica a mulheres vítimas de violência no meio universitário, as instituições de ensino têm feito ainda muito pouco pelo combate desse tipo de violência.
“Campanhas têm sido feitas, e, depois de brigarmos muito, informações sobre violência sexual e de gênero dentro do campus começaram a ser incluídas no manual dos calouros, mas ainda de forma muito incipiente. As universidades não têm buscado alterar seus regimentos internos e códigos de ética para incluir punições específicas aos cinco tipos de violência descritos na legislação brasileira (física, psicológica, moral, sexual e patrimonial). Há muitas campanhas mas poucos avanços da punição dos agressores. Os escritórios criados por algumas universidades [como o USP Mulheres] não têm o orçamento nem o poder político necessário frente a uma reitoria heterossexual, branca e masculina que concentra o poder de decisão”.
Juliana Domingos de Lima