“Muitas ciganas dizem que ‘feminismo é palavra não cigana’, mas lutam pelo fim dos casamentos forçados e pelo acesso à educação”, conta nossa nova colunista Rebecca Souza
(AzMina, 19/07/2017 – acesse no site de origem)
título deste meu texto pode causar surpresa. A mesma surpresa que constantemente interlocutores têm ao saber de minha origem étnica.
Meu nome é Rebecca Souza, tenho 31 anos, e sou uma mulher de etnia cigana. Para mim, não há uma “identidade” cigana: cigana é o que eu sou, com calças ou roupas tradicionais do meu povo. Eu também sou da vertente do feminismo descolonial, a vertente latino americana feminista que tenta romper com o eurocentrismo, e que diz nos debates: ‘eu falo por mim mesma!’
Quando digo que sou uma cigana e feminista, a primeira pergunta que recebo é: existe feminismo cigano?
Sei que em muitos países europeus, onde há uma grande comunidade cigana, há um ensaio tímido de uma vertente assim. Contudo, mesmo esse ensaio está rendendo frutos como a eleição de uma congressista cigana na Suécia, Soraya Post. Ela não é apenas uma cigana feminista, mas também foi escolhida pelo partido “Iniciativa Feminista” sueco.
Não podemos esquecer o sentimento anti-cigano, que é muito forte em países europeus. Pelo menos sete deles têm leis rigorosas contra pessoas da minha origem étnica. Há países membros da Organização das Nações Unidas (ONU) que choram seus mortos da Segunda Guerra Mundial mas continuam a negar o “Holocausto Cigano”.
Aqui no Brasil e em muitos países da América Latina, os ciganos estão intimamente ligados ao misticismo. Explicar às pessoas que somos um grupo étnico e não uma religião é sempre um obstáculo que obscurece a principal luta: que somos um povo perseguido e nossas mulheres estão em risco.
Eu sempre digo em minhas palestras que xenofobia é também a violência de gênero.
Qualquer mulher de minoria étnica e racial corre o risco de ser violada duas vezes: por ser dessa minoria e por ser mulher.
Nossa roupa é celebrada como “moda alternativa”, porém, em nós, ela vira motivo de desconfiança, e faz com que sejamos hostilizadas. Criam-se “academias de danças ciganas” enquanto nossos acampamentos são alvo de vandalismo. Comemoram-se festas com temáticas ciganas enquanto quase metade dos nossos são semianalfabetos.
O fetiche sobre nós é forte. Olhe em sua lembranças: naturalmente, cigano é sinônimo de “Carmen”, a cigana sedutora e infiel. Mesmo na cultura popular infantil, “O Corcunda de Notre Dame”, exibido pela Disney em 1996, é um exemplo. Enquanto as outras princesas têm uma imagem delicada e até mesmo uma virgindade implícita, Esmeralda, a cigana, é pintada como uma mulher sensual, que seduz e enfeitiça com sua dança, fazendo com que os homens santos e piedosos da igreja e todos os “homens bons” caiam em pecado. Tudo isso ligado à imagem de uma menina de 16 anos – a idade do personagem na obra de Víctor Hugo.
Eu sempre digo que Esmeralda é o maior símbolo do ódio contra nós, mulheres ciganas, e por isso um feminismo que fale de nossas demandas é necessário. Entretanto, se não há feminismo cigano, então como lutam as mulheres ciganas?
De um tempo pra cá começamos a nos organizar e cada vez mais falamos sobre os direitos individuais.
Em muitos lugares existem “associações de mulheres ciganas”, que lutam por seu direito à dignidade. Algumas mais tradicionalistas, outras reconhecidamente feministas. Ciganas como a já citada Soraya Post, Rita Iznov (relatora da ONU de direitos humanos) e outras estão ocupando posições cada vez mais visíveis.
Muitas mulheres ciganas dizem que “feminismo é palavra de payo (não-ciganos)”, mas mesmo assim elas lutam pelo fim dos casamentos forçados para as nossas meninas, pelo acesso à educação e pelo direito de viver sua sexualidade sem “véus de pureza”. Isso é feminismo mesmo que elas nunca tenham lido Simone de Beauvoir, mesmo que não estejam em universidades ou em lugares acadêmicos, mesmo que não participem de marchas ou coletivos feministas.
Mas, afinal, quais organizações feministas estarão abertas para as mulheres ciganas, muçulmanas ou indígenas, sem jogar o seu olhar colonizador, sem abanar suas cabeças e proferir: ‘eu sei o que é melhor para você’?
Nós podemos e devemos falar da legalização do aborto, mas quando falamos de mulheres de minorias étnicas que sofrem esterilização em alguns países ou que não têm nenhum acesso a tratamentos obstétricos de qualidade? Muitos dizem que véu é submissão, mas esquecem que ele pode ser também resistência.
Por outro lado, muitos nos acolhem quando nosso próprio povo perde sua antiga identidade matriarcal, em que havia velhas e sábias mulheres que se reuniam em tendas em noites de lua cheia, e substituem nossas Deusas Negras por uma santa da igreja. Vivemos uma perda de identidade que apóia cada vez mais o cristianismo, principalmente em igrejas protestantes, que se introduzem e demonizam as nossas raízes.
Curiosamente, mesmo sendo usurpados de nossos direitos identitários somos orgulhosos de nossas raízes e nossas crenças, porque também somos de um povo que a cada século se reinventa. Dizemos que “nossa pátria é onde nossos pés caminham”. Para muitas mulheres ciganas, nosso país, neste momento, são as áreas em que caminhamos por direitos.
Rebecca Souza é feminista Descolonial e mulher de etnia cigana que vive no norte do Brasil. É ativista de direitos humanos e foi considerada “jovem mulher líder” pelas Nações Unidas. Foi do Grupo Assessor da Sociedade Civil da Onu Mulheres, é sacerdotisa de bruxaria tradicional e nas horas vagas se apresenta como dançarina de dança do ventre.