Moradoras de rua ou com histórico de uso de drogas têm seus bebês retirados ainda nas maternidades e entregues para adoção pela Justiça à revelia das mães
(A Pública, 20/07/2017 – acesse no site de origem)
“Arruma as coisas do seu filho que o Conselho Tutelar está vindo buscar ele daqui a 30 minutos.” Era uma terça-feira, 26 de julho de 2016, 8 horas da manhã. Yanca Natalie de Miranda amamentava seu bebê na sala da Maternidade Hilda Brandão, da Santa Casa de Belo Horizonte, quando a assistente social do hospital lhe comunicou que seu filho seria levado para um abrigo. Durante os 19 dias que ela e o bebê estiveram internados, ninguém conversou sobre o assunto. “Do dia que meu filho nasceu, 7 de julho, até o dia 26 de julho, não me falaram nada que o Conselho Tutelar ia lá, que isso podia acontecer. Disseram apenas que eu ia passar uns dias no hospital em observação porque estava escrito no meu cartão de pré-natal que eu era usuária de drogas”, relatou a jovem de 21 anos, que, desde então, luta para ter sua criança de volta. “Eu sempre tive vontade de ser mãe. Se for preciso eu lutar dia e noite, eu luto dia e noite para ter o meu filho do meu lado”, diz Yanca.
Desde julho de 2016, as maternidades de Belo Horizonte são obrigadas a acionar a Vara Cível da Infância e da Juventude, no prazo de 48 horas, contadas a partir do nascimento do bebê, quando houver evidências ou constatação de que a mãe é usuária de drogas e/ou tem trajetória de rua. É o que prevê a Portaria 3/2016, assinada pelo juiz Marcos Flávio Lucas Padula. A prática, no entanto, não é novidade na capital mineira. Há registros de retirada compulsória de filhos de mulheres em situação de vulnerabilidade desde 2011. Em 2014, o Ministério Público (MP) de Minas Gerais publicou duas recomendações, de números 5 (clique para ver) e 6 (clique para ver) , destinadas às maternidades e às Unidades Básicas de Saúde, com conteúdo semelhante ao do documento da Justiça. A diferença é que a norma da Vara da Infância e da Juventude prevê penalização aos funcionários da saúde que não a cumprirem. “Qualquer omissão dolosa ou culposa em proceder ao encaminhamento à autoridade judiciária ensejará apuração da responsabilidade criminal do profissional, nos termos do artigo 132 do Código Penal e do artigo 236 do Estatuto da Criança e do Adolescente”, diz o texto.
As regras foram impostas com a justificativa de proteger as crianças. Para as nove mães que tiverem seus bebês retirados na maternidade, esse argumento não faz nenhum sentido. Todas contaram à Pública que desejaram os seus filhos, se prepararam para recebê-los e que, dentro do que suas condições permitiam, tentaram fazer o melhor possível.
“Alegaram que eu ia oferecer risco para a criança, que eu tinha que me manter afastado, mas eu estava preparado para ter o meu filho comigo. Desde quando eu descobri minha gestação, já com quatro meses, eu parei de usar drogas, voltei a trabalhar mais que depressa, procurei acompanhamento psicológico, reorganizei a minha casa”, contou Paulo Aniladam Soares Santos (transexual homem), de 27 anos. Pedro* nasceu às 16h14 do dia 4 de março de 2015 na maternidade da Santa Casa. Com medo de que o uso de drogas nos primeiros meses de gestação tivesse prejudicado a saúde do bebê, Paulo relatou para os médicos seu histórico de vício e que estava se tratando. No dia seguinte ao nascimento da criança, recebeu a notícia de que seu filho poderia ir para um abrigo. Sua mãe tentou ficar com a guarda, sem sucesso. Foram 12 dias de terror no hospital. “Eu fiquei 12 dias na Santa Casa internado, esperando a decisão do juizado, o que o juiz ia fazer comigo. Eu não podia fazer nada porque eu não podia sair do hospital. Eu estava como prisioneiro da Justiça”, contou. Paulo não pôde ficar com Pedro. “Eu tive que entregar ele para uma desconhecida”, contou à Pública.
Por meio de nota, a Santa Casa informou que mantém equipe multidisciplinar de acompanhamento e trabalho com pacientes que se enquadram na portaria. “Conforme expresso na referida Portaria, a Santa Casa cumpre a determinação de prestar as informações ao juízo competente. Afora isto, as ações desenvolvidas na instituição são no sentido de prestar a assistência integral à gestante e aos seus recém-nascidos”, acrescentou.
De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 428 bebês até 1 ano de idade foram abrigados em Belo Horizonte desde 2014, quando as recomendações do MP foram publicadas. De 2013 a 2014, a quantidade de acolhidos saltou de 130 para 174, número recorde desde 2012. Os dados do CNJ, no entanto, não condizem com as informações da Secretaria Municipal de Assistência Social. Conforme a pasta, desde 2014, 343 crianças de 0 a 1 ano foram abrigadas na capital mineira (veja os números ano a ano, por órgão). A secretaria afirmou que não é possível dizer com exatidão quantas crianças foram retiradas de mães usuárias de drogas e/ou em trajetória de rua. “A Vara da Infância e da Juventude, ao solicitar vaga, não informa de forma clara e suficiente o motivo do acolhimento. E por se tratar de uma determinação judicial, a prefeitura de Belo Horizonte é obrigada a fazer o acolhimento, e só após será realizado o estudo de caso e o acompanhamento sócio-familiar para garantir a reintegração ou integração familiar”, destacou o órgão.
A reportagem solicitou os dados ao MP e ao Tribunal de Justiça, que informaram não possuir um levantamento dos casos. De acordo com o juiz Marcos Padula, os casos diminuíram. Segundo ele, de 2014 a 2015, a vara era notificada, em média, duas vezes ao dia e, desde então, a frequência passou a duas vezes por semana. Padula diz também que, apesar de a regra valer para as maternidades públicas e privadas, não recebeu notificações de maternidades particulares. “É uma questão sempre conjugada com carência material. A carência material não é fundamento básico para isso porque essa questão da dependência química também acontece em classes mais abastadas, só que, em geral, a própria família providencia a internação clínica de desintoxicação ou os próprios avós requerem a guarda na vara de família e resolvem essa situação sem a necessidade da intervenção da infância”, justificou o juiz.
Uma vez abrigados, os bebês podem receber a visita de suas mães apenas uma hora por semana. Desde que Pedro saiu do abrigo, Paulo não pôde mais amamentá-lo. O desespero de perder o filho e tudo o que tinha conquistado e superado para recebê-lo levou Paulo novamente para as drogas e para a rua. “Eu tive uma recaída enorme. Eu me tornei uma pessoa doente. Eu me tornei no que eles quiseram me transformar, em uma pessoa louca, surtada, mas eu não era, só estava desesperado. Tudo que eu tinha na minha vida havia acabado. Como não enlouquecer? Como não entrar em desespero? Tiraram o meu filho de mim!”.
Pedro completou 1 ano de vida no abrigo e foi para a casa da avó, que conseguiu a guarda provisória. “O melhor momento da vida de uma mãe tiraram de mim. Eu não vi o meu filho dando o primeiro passo, eu não vi o meu filho falando a primeira palavra. O primeiro sorriso do meu filho quem viu foram pessoas estranhas”, lamentou Paulo. Com seu bebê na casa da família, o jovem se reergueu novamente, parou de usar drogas, está terminando os estudos, trancados no segundo ano do ensino médio, e voltou a curtir seus hobbies: música, leitura, estudar psicologia e biologia, futebol, UFC. “Eu sonho com o dia que o meu filho vai morar comigo. Eu quero muito isso.”
A Defensoria Pública de Minas Gerais ajuizou uma Ação Civil Pública para que as mães possam visitar os filhos diariamente. “Estou aguardando uma manifestação do município para tomar uma decisão”, afirmou Marcos Padula.
Nem sempre eles voltam
Nem sempre os bebês retirados das mães nas maternidades e levados para os abrigos retornam para a casa de suas famílias. Há três anos, Luciana da Silva Bento, 40 anos, tenta reaver a guarda do casal de gêmeos Júlia* e Bruno*, adotados com 3 meses de idade. Na semana passada, ela foi consultar o processo de adoção, com o intuito de acrescentar informações à reportagem, e descobriu que o Tribunal de Justiça havia indeferido, no dia 8 de maio deste ano, o recurso impetrado pela Defensoria Pública para que as crianças voltassem para a mãe. “A família substituta oferece-lhes melhores condições de ensino e educação, bem como lhes ensinar os valores necessários para o correto desenvolvimento, noções de higiene e hábitos diários, alimentação adequada, e todo o afeto para que possam ter a correta compreensão da vida que os circunda, inclusive da solidariedade, apoio, mútua assistência, direitos e obrigações que constituem a vida em família”, argumentou o relator do processo, que acrescentou: “No caso dos autos, comprovada a ausência de condições da genitora em educar seus filhos”. O caso foi encerrado em segunda instância. “Não me falaram nada, ninguém fala nada pra gente do que está acontecendo no processo. Se eu não tivesse vindo aqui hoje, não ia ter ficado sabendo disso. E agora? O que eu faço?”, questionou Luciana.
Júlia e Bruno nasceram no dia 8 de julho de 2014 na maternidade Hilda Brandão. A justificativa para o abrigamento compulsório foi que a mãe era usuária de drogas e moradora de rua. Luciana nega. Diz que parou de usar o crack com quatro meses de gravidez “porque o médico falou que ia prejudicar muito o bebê” e que foi morar na casa do filho, antes do nascimento dos gêmeos. “Eles estavam me julgando pelo meu passado. Eles me condenaram pelo meu passado”, contestou Luciana. Ao notificar a Vara da Infância e da Juventude, a equipe de assistentes sociais da Santa Casa informou que Luciana demonstrava “vínculo, cuidado e carinho com os recém-nascidos”. Ela ficou com as crianças um mês e três dias dentro do hospital, aguardando uma determinação da Justiça. As crianças tiveram alta no dia 30 de julho, mas só foram para o abrigo no dia 11 de agosto. A filha de Luciana e sua mãe tentaram recuperar o casal de gêmeos, mas não conseguiram. No dia 8 de maio de 2014, eles foram adotados.
“O meu sofrimento, para eles, não era nada. O negócio era só julgar, porque você é dependente química. Ninguém perguntou: você quer uma oportunidade pra mudar, você quer mudança?”, pergunta Luciana. Na tentativa de recuperar os bebês, além de parar de usar drogas, ela arrumou um lugar para morar com um quarto só para eles, na Pastoral da Infância e Juventude, e passou a trabalhar como auxiliar de cozinha. “Eu comecei a correr atrás pra ver se eu conseguia reaver a guarda dos meus bebês de volta. Só que não teve jeito, não teve condições. Quando eu fui descobrir, as minhas crianças já estavam com a família substituta. A moça do abrigo falou que eu não podia ver mais as minhas crianças”, contou. Ela lembra que pesquisou informações sobre a família substituta e que se surpreendeu pelo fato de o pai adotivo ter tatuado o nome do casal mesmo existindo a possibilidade de as crianças voltarem para a família. Ao ser questionado sobre a agilidade do processo de Luciana, uma vez que o tempo para o estudo de cada caso demora, em média, de seis a nove meses, o juiz Marcos Padula respondeu: “Esse caso levanta um certo questionamento. Vou avaliar com urgência”. Antes dos gêmeos, Luciana, que morou nas ruas desde os 13 anos de idade, teve quatro filhos, que já estão com mais de 20 anos, e teve um bebê no dia 17 deste mês. Houve uma grande mobilização de agentes de saúde e movimentos sociais para que ela não perdesse seu filho mais novo. Desde o nascimento de Bruno e Júlia, ela diz ter parado de usar drogas. “Eu achava que, ao invés deles fazerem isso com a gente, deveriam fazer uma casa de recuperação para a mãe ficar com as crianças, para ver quem realmente queria, quem estava realmente disposta a mudar. A gente tinha que ter pelo menos a oportunidade”, diz Luciana.
Em dezembro do ano passado, a prefeitura de Belo Horizonte inaugurou a Unidade de Acolhimento Infantil – Casa de Bebês, que recebe crianças de mães usuárias de drogas. De acordo com a Secretaria Municipal de Assistência Social, o objetivo do novo espaço é garantir o vínculo entre mães e bebês por meio de uma rotina de cuidados básicos, como banho e amamentação. As mães, no entanto, não moram com as crianças. A relação é mediada por profissionais da saúde e da assistência social, e as mulheres passam por tratamentos da dependência química e por um cuidado em rede. “O que possibilita opinar tecnicamente para encurtar o período de acolhimento, dando um parecer para o retorno à família de origem ou para o encaminhamento para processo de adoção”, destacou a Secretaria de Assistência Social por meio de nota.
Assim como Luciana, Carolina parou de fumar crack no quinto mês de gestação. A assistente social que a atendeu na maternidade do Hospital Odilon Behrens confirmou que ela não estava sob o efeito de drogas quando foi ganhar o bebê. Mesmo assim, seu filho foi entregue para outra família. Rosângela visitava sua filha todas às quartas-feiras no abrigo. No dia 20 de janeiro foi comunicada por telefone de que não poderia mais ver a criança porque ela tinha sido adotada. O juiz indeferiu a guarda de João para a avó, porque ela já estava com idade avançada. Ex-moradora de rua, Mariana foi retirada à força da Maternidade Risoleta Neves pelos seguranças porque não queria deixar a filha para trás. Aline Paula afirmou que atendeu a todas as solicitações da Justiça para reaver a guarda do seu filho, retirado de seus braços há seis anos: “Eu precisava era de tratamento, não era de eles terem tirado o meu filho”.
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Portaria em xeque
Autor das decisões que levaram ao abrigamento dos filhos de Yanca, Paulo, Luciana e Aline, justificado pelo consumo de drogas pelas mães, o juiz Marcos Padula, que assina a Portaria 3/2016, afirmou que “a questão não é o uso da droga em si, mas o uso que já atingiu um grau de dependência que vai incapacitar ou impossibilitar que aquela mãe e pai exerçam com responsabilidade os cuidados pelas crianças”. “Muitas vezes eles não cuidam nem de si próprios, das questões mínimas, básicas de higiene, quanto mais cuidar de uma criança”, acrescentou. Segundo Padula, a sua intenção, ao criar a portaria, foi preservar a convivência na família natural. “Mas sem ignorar que existem, às vezes, situações que demandam um afastamento, nem que seja um afastamento provisório da criança da família natural. É uma situação prevista no estatuto, não é uma coisa que foi criada pela portaria”, ponderou. De acordo com ele, a equipe dos hospitais, antes de notificar a vara, faz contato com o Conselho Tutelar de referência, com o posto de saúde do bairro que atende a família, e procura saber se existe um histórico de outros filhos que foram também encaminhados para parentes ou para adoção.
A separação das mães de seus bebês ainda na maternidade tem sido, no entanto – desde a publicação das recomendações do MP que motivaram a formulação da portaria –, duramente combatida por órgãos e técnicos da saúde, movimentos sociais, Defensoria Pública e entidades que defendem os direitos humanos (veja todos os documentos oficiais contrários às normas publicados desde 2014).
“As recomendações, da forma como se encontram, violam os direitos dessas crianças, quando não consideram que é sempre premissa a proteção familiar e comunitária, devendo ser esgotadas todas as possibilidades de relacionamento mãe e filho, família-criança, criança-abrigamento e, por fim, adoção dessas crianças por outra família que não a primária”, afirmou o então Secretário de Saúde Fabiano Geraldo Pimenta Júnior, em ofício enviado à Promotoria em dezembro de 2014, com o assunto: “Recomendações nº05 e 06/2014”. O Conselho Municipal de Saúde chegou a deliberar que a secretaria não cumprisse as determinações da Justiça e do MP. Por causa disso, o presidente do órgão, Bruno Abreu Gomes, está respondendo a um processo criminal com base nas penalizações previstas na portaria.
A assessoria de imprensa do MP de Minas Gerais informou que os promotores da Infância e da Juventude, Maria de Lurdes Rodrigues Santa Gema, Matilde Fazendeiro Patente e Celso Penna Fernandes Júnior, autores das recomendações, não estão comentando o assunto.
Na avaliação da defensora pública da Infância e da Juventude, Danielle Belletato, o que está prevalecendo no sistema de justiça da capital mineira é a marginalização da pobreza, uma vez que as normas da Vara da Infância e do MP não atingem usuárias de drogas com boas condições financeiras. “Em Belo Horizonte, o abrigamento, que deveria ser exceção, virou regra”, destacou. De acordo com um levantamento realizado pela Defensoria Pública. De janeiro a 17 de maio deste ano, das 35 notificações das maternidades à Vara da Infância e da Juventude, 20 resultaram em acolhimento.
“A violência que essa mulher sofre no seu direito de ser mãe é imensurável. Qual o critério para medir a qualidade de uma maternidade?”, pergunta a defensora de direitos humanos, Júnia Roman, para quem a notificação imediata à Vara da Infância e da Juventude é um exercício de futurologia ao avaliar ainda na maternidade que a mulher não terá condições de ser mãe.
A Defensoria Pública de Minas Gerais ajuizou uma representação contra Padula no CNJ questionando a validade da portaria. Os ministérios da Saúde e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome também demonstraram preocupação com a prática e emitiram notas técnicas, em maio do ano passado, orientando o atendimento às mães usuárias de drogas no âmbito do SUS – que prevê o respeito à escolha das mulheres de ficar ou não com os filhos. “O Ministério da Saúde e o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome entendem que decisões imediatistas de afastamentos das crianças de suas mães, sem o devido apoio e acompanhamento antes, durante e após o nascimento, bem como uma avaliação minuciosa de cada situação, violam direitos básicos, tais como a autonomia das mulheres e a convivência familiar”, diz o texto.
Pressionado por movimentos sociais, entidades ligadas aos direitos humanos, órgãos da saúde e Defensoria Pública, Padula afirmou que vai rever a norma. Segundo ele, o processo para alterar uma portaria é demorado e, por isso, está criando, em parceria com a Secretaria de Assistência Social, uma orientação para que o hospital notifique, “preferencialmente”, o Conselho Tutelar, e não mais a Justiça, em caso de nascimento de bebês de mães usuárias de drogas e/ou em trajetória de rua. “Agora, naquele risco que é imediato, a pessoa sente que tem que ser naquela hora, se não vai acontecer alguma coisa; aí a gente não pode fechar as portas da Justiça”, avaliou. E disse que a Vara da Infância e da Juventude passará a convocar a Defensoria Pública desde o início do processo para a defesa da família. “Inicialmente, a gente tinha entendido apenas que deveria chamar se a família requeresse a presença do defensor. Agora nós estamos entendendo que ele será chamado mesmo que a família não peça expressamente”, afirmou.
A defensora Danielle Belletato advertiu que a ausência da Defensoria infringe o direito de defesa da criança e dos pais, que, em muitos casos, devido à situação de vulnerabilidade, têm dificuldades em procurar o órgão. Segundo ela, a Defensoria estava sendo notificada apenas no processo de adoção, quando a criança já estava sendo encaminhada para a família substituta. “Nesses casos, a reversão da adoção já é quase impossível”, observou.
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Assim que as crianças são abrigadas, as equipes das casas de acolhimento têm de fazer um Plano Individual de Atendimento (PIA), um estudo aprofundado de cada caso, previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que será usado para nortear a decisão da Vara da Infância e da Juventude em relação à necessidade de adoção. O plano deve investir nas possibilidades de reintegração familiar e o encaminhamento para adoção quando esgotadas as possibilidades de retorno ao convívio familiar, de acordo com o MDS. O órgão destaca que, para que se elabore um PIA consistente, é necessário um período de tempo que permita o conhecimento da situação da criança/adolescente, de sua família e comunidade de origem, por meio do aprofundamento do estudo inicial.
Depois de elaborado o plano, os abrigos devem produzir, a cada seis meses, um relatório circunstanciado para mostrar a evolução ou não dos fatores que levaram à retirada da criança/adolescente da família de origem. Ao sugerir o acolhimento das crianças de Luciana da Silva Bento, por exemplo, o relatório feito pela Casa Mãos de Maria destacou que ela “não possui moradia fixa, tem trajetória de vida nas ruas e faz uso contumaz de drogas desde os 15 anos de idade”. No mesmo documento, o abrigo afirma que Luciana informou ter procurado duas vezes o tratamento para drogas no CMT, mas que ela abandonou com a justificativa de que os remédios usados causavam dependência. Além disso, ela disse aos servidores da instituição, de acordo com o documento, não precisar de tratamento. “Se eu tiver com meus bebês, no outro dia eu paro”, teria dito Luciana aos funcionários da entidade.
O juiz Marcos Padula admitiu que há casos de laudos feitos pelas casas de acolhimento com informações exageradas ou tendenciosas. “Já teve um caso que eu percebi que realmente não havia elementos, e daí a importância de possibilitar o acesso à Defensoria para todos os atos do processo, para que possa haver o contraditório e que seja contrabalançado com elementos para mostrar que a realidade não é tão pesada assim”, afirmou.
O Fórum de Abrigos, organização que representa os abrigos, informou, por meio de nota, que não lhes cabe dizer que existem informações falsas ou não nos documentos enviados à Justiça. “Cada unidade deve manter o seu registro de visitas dos familiares, isto é relatado no relatório circunstanciado. Cabe citar que sabemos de unidades que já tiveram suas equipes agredidas e inclusive sob a mira de uma arma”, acrescentou. De acordo com a entidade, as unidades buscam agir de acordo com as Orientações Técnicas para os Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes Conanda–CNAS e as ações devem ser pautadas pelo respeito. “A pobreza não é motivo para retirada de uma criança/adolescente, isto está previsto no ECA. O motivo para a retirada é alguma violação de direitos sofrida pela criança/adolescente. O acolhimento é uma medida protetiva para a criança/adolescente quando em situação de violência doméstica – podendo ser, maus-tratos, abandono, negligência, violência física e sexual”, destacou o Fórum.
Fuga para outras cidades
Desde a publicação das recomendações, a Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte identificou um aumento no número de gestantes que têm seus filhos em outras cidades, em suas residências, muitas vezes com pouquíssimo ou nenhum recurso. “Os profissionais de saúde privilegiam a assistência em detrimento da delação, uma vez que culmina por afastar o usuário da rede e, consequentemente, o atendimento de que necessita, principalmente das mulheres no período gestacional e pós-nascimento da criança”, destacou o ex-secretário de Saúde, Fabiano Geraldo Pimenta Júnior, em ofício encaminhado à Promotoria. Na ponta do atendimento a essas mulheres, a coordenadora do Consultório de Rua de Belo Horizonte, Daniele Vassalo, observou que as determinações do MP e da Justiça para a retirada compulsória de mães usuárias de drogas e/ou em trajetória de rua prejudicaram um trabalho de muitos anos em busca de uma relação de confiança entre as pessoas em situação de vulnerabilidade e os profissionais da assistência social e da saúde da instituição.
De acordo com o Ministério da Saúde, os Consultórios de Rua, as Unidades Básicas de Saúde e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) devem ser utilizados pelos gestores para assegurar os direitos e manutenção da saúde de mãe e filho em situação de rua ou problemas com vícios. Existem atualmente 41.688 Unidades Básicas de Saúde, 104 Equipes de Consultórios na Rua e 2.463 CAPs funcionando em todo o Brasil. Conforme alertou o ministério por meio de nota, no âmbito da saúde pública, o tratamento baseado no encarceramento, punição e/ou repressão possui pouco ou nenhum efeito terapêutico. “As necessidades de mulheres e adolescentes com quadro de sofrimento psíquico decorrente de álcool ou outras drogas ou mesmo em situação de vulnerabilidade social, como vivência nas ruas, não enseja a relativização ou flexibilização dos direitos, inclusive o de autonomia e liberdade, tampouco gera o direito de intervenção do Estado no processo de cuidado intrafamiliar, uma vez que não compete aos agentes estatais impedir o exercício dos direitos individuais assegurados pela Constituição Federal e nos instrumentos internacionais de direitos humanos. A única exceção se dará nos casos em que houver vontade expressa da mãe em não conviver com o filho”, acrescentou o órgão.
A Pesquisa Nacional sobre o Uso do Crack, lançada pelo governo federal em 2014, concluiu que as mulheres usuárias de drogas, por uma questão de gênero, têm dificuldades de acessar os serviços de tratamento especializado. “As mulheres costumam enfrentar barreiras relevantes quanto a acessar serviços de tratamento especializado, onde são, frequentemente, vítimas de discriminação e preconceitos, e têm suas necessidades específicas simplesmente ignoradas”, diz a pesquisa. Não existe uma política pública no âmbito nacional, no entanto, voltada às especificidades dessas mulheres. De acordo com a pesquisa, aproximadamente 13% das mulheres usuárias de crack relataram estar grávidas no momento da entrevista. Além disso, mais da metade das usuárias de crack já haviam engravidado ao menos uma vez desde que iniciaram o uso da droga. A pesquisa indica, ainda, que 46,6% das mulheres entrevistadas relataram já ter sofrido violência sexual na vida, enquanto entre os homens o percentual foi 7,4%.
*Usamos nome fictício de algumas mães que solicitaram o anonimato para preservar a identidade das crianças
Alice Maciel